O Brasil vive um daqueles momentos em que a realidade parece ter sido escrita por um roteirista com um humor particularmente sombrio. Enquanto o cidadão comum se desdobra entre o preço no mercado e a fila do SUS, um espetáculo paralelo se desenrola em Brasília. O protagonista? O Poder Legislativo, a casa que deveria ser o espelho das ruas, mas que, parece habitar um planeta distante.
A última cena dessa novela é foi a tentativa da PEC da Blindagem. Uma manobra tão transparente que beira o sarcasmo. É como ver alguém, diante de um incêndio, preocupado em aprovar uma lei que garanta que o extintor não possa ser usado em seu próprio quintal. O foco, claro, não é apagar o fogo, mas assegurar que as chamas não lambam as solas dos sapatos de quem deveria estar combatendo-o.
E aqui chegamos ao cerne da questão, que muitos teimam em ignorar em meio ao cabo de guerra habitual. O grande mal crônico do Brasil não está necessariamente no Planalto ou no STF, está naquela cúpula que deveria ser o termômetro da nação: o Congresso Nacional. O problema é um legislativo que parece ter trocado a caneta pela celular, a lei pelo like, e o mundo real pelo mundo online.
Os grandes debates nacionais, como a reforma tributária, a melhoria da educação são relegados a segundo plano e viram pano de fundo para a verdadeira arena: as redes sociais. O plenário virou um estúdio de gravação. Os discursos não são mais feitos para convencer pares ou construir consensos. São roteirizados para viralizar, para “lacrar”, para alimentar um feed de indignação seletiva. A métrica do sucesso deixou de ser uma lei aprovada que melhora a vida do povo e passou a ser o número de compartilhamentos e a adesão da própria bolha ideológica.
É um teatro de sombras digitais. Enquanto isso, no mundo real (aquele onde você paga impostos, espera o ônibus e teme a violência) as urgentes reformas de base mofam em gavetas. A prioridade da casa não é legislar, é performar. Performar bravata, performar indignação, performar uma guerra contra outros poderes que, não por acaso, rende ótimos clipes para as redes.
Critica-se o Executivo pela lentidão? Justo. Questiona-se o Judiciário por suas decisões? Legítimo. Mas quem é o poder que, por definição, deveria ser o motor das grandes mudanças? Quem tem a caneta para escrever as leis que de fato reformam um país? O Legislativo. E é justamente esse poder que, ao eleger a lacração como sua principal atividade, abdica de sua função essencial.
O resultado é que o barco brasileiro navega em águas turbulentas com metade da tripulação mais preocupada em postar fotos do temporal do que em ajudar a bombear a água que entra no porão. A PEC da Blindagem é o símbolo máximo dessa inversão de valores: a preocupação maior não é com a eficiência do Estado para o povo, mas com a blindagem do Estado para si mesmo.
No fim das contas, o cidadão fica à deriva, assistindo a esse reality show de custo bilionário, torcendo para que, um dia, os nossos representantes lembrem que a vida não é um story que some em 24 horas. Ela é dura, real e cobra, todos os dias, por atitudes que vão muito além de um simples “curtir”.