Por Mariana Rodrigues
Há dois séculos, um novo capítulo começava a ser escrito no sul do Brasil. Em 1824, os primeiros imigrantes alemães desembarcavam no país em busca de oportunidades e uma nova vida. Dois séculos depois, os traços dessa herança seguem vivos no idioma falado nas ruas de pequenas cidades, nas receitas que atravessaram gerações, na arquitetura enxaimel e no senso de comunidade. Para entender a dimensão dessa presença e o que ela representa para o Brasil, a EnFoco conversou com o professor e historiador Carlos Eduardo Piassini, autor do livro Imigração Alemã e Política.
Os Primeiros Imigrantes
No início do século XIX, o que hoje conhecemos como Alemanha ainda não era um Estado unificado. A região era composta por pequenos reinos que compartilhavam a língua alemã como uma característica comum. Grande parte desses territórios ainda mantinha resquícios do feudalismo – um modelo social e econômico herdado da Idade Média – ao mesmo tempo em que começava a transição para o capitalismo.
Segundo o professor e historiador Carlos, essa transformação atingiu diretamente a vida da população. Camponeses, que antes tinham acesso à terra através de vínculos com a nobreza, perderam esse direito com o avanço do novo modelo econômico. Sem emprego e sem terra, migraram para as cidades em crescimento e se tornaram mão de obra barata nas indústrias que surgiam. Ao mesmo tempo, a vacinação, impulsionada pelas campanhas napoleônicas em vários pontos da Europa, reduziu a mortalidade e provocou o aumento da população. O resultado foi uma massa urbana empobrecida, marginalizada e criminalizada. Diante desse cenário, a emigração se tornou uma alternativa viável e incentivada pelas autoridades locais.
Lauro Peiter, empresário na área da construção civil e descendente de alemães do interior do Rio Grande do Sul, relembra a tragetória da família: “Meu tataravô veio da Alemanha em 1862. Eles se estabeleceram em Venâncio Aires. Por que eles vieram da Alemanha naquela época? Pela dificuldade, fome e necessidade que passavam lá”, conta. A cada dois anos, os integrantes da família Peiter se reúnem , uma tradição que ajuda a manter viva a memória dos antepassados. “Foi uma aventura. Vieram para o Brasil com a promessa do governo de que receberiam um pedaço de terra”, completa Lauro.

O Brasil, recém-independente e com vastas áreas a ocupar, se apresentava como um destino estratégico para os interesses do governo. A imigração era uma solução para múltiplas demandas: reforçar o exército, ocupar regiões estratégicas e fomentar a produção agrícola. Nesse cenário, os primeiros imigrantes alemães chegariam em 1824, abrindo um fluxo que se estenderia por todo o século XIX e também marcaria o século XX.
O lado materno da família de Lauro envolve diretamente a presença militar estrangeira. “Os familiares da minha avó paterna, da família Beinke, vieram da Alemanha como mercenários para lutar na Guerra do Paraguai. O Brasil trouxe mercenários da Alemanha. Ele foi para a guerra, sobreviveu e, como recompensa, ganhou três colônias de terra em Venâncio Aires”, relata. “Essa é a história da minha família pelos dois lados: paterno e materno.”
O Sul Como Destino Estratégico
O Rio Grande do Sul foi o principal destino dos imigrantes alemães. Região de constante disputa entre portugueses e espanhóis e, posteriormente, entre o Brasil e países vizinhos, o Sul precisava ser povoado. Era preciso criar uma barreira humana para conter possíveis invasões e consolidar o domínio sobre o território.
O governo imperial estabeleceu colônias agrícolas em áreas de terras devolutas, geralmente próximas a rios, como os vales dos rios Sinos e Caí. A navegação fluvial era vital para escoar a produção, num tempo em que as estradas eram escassas e precárias. Mas esse processo teve um custo, pois muitas dessas terras pertenciam a populações indígenas, que foram expulsas ou dizimadas durante a expansão das colônias. A instalação dos alemães, portanto, também representou um capítulo violento de exclusão e apagamento de povos originários.
O Papel Econômico Dos Imigrantes
Quando os primeiros imigrantes alemães desembarcaram no Brasil, seu destino já estava traçado: o trabalho no campo. O governo ofereceu incentivos e subsídios como passagens, lotes de terra, sementes, ferramentas e crédito. Embora esse apoio fosse, em teoria, reembolsável, na prática ele foi fundamental para que as colônias ganhassem forma.
Nem todos eram agricultores. Muitos vinham da Alemanha como artesãos, profissionais liberais e pequenos comerciantes, expulsos pela escassez de oportunidades em seu território de origem e abriram comércios, oficinas e pequenas fábricas no Brasil.
Com o passar do tempo, esses negócios evoluíram. Assim, a comunidade alemã teve papel decisivo no crescimento econômico do Rio Grande do Sul ao impulsionar a produção local e moldar a paisagem urbana e econômica. Um dos exemplos mais notáveis é o surgimento do Grupo Gerdau, que nasceu desse contexto e se tornou uma das maiores siderúrgicas do Brasil.
De Imigrantes A Brasileiros: A Cultura Teuto-Brasileira
Apesar da forte presença alemã no Sul do Brasil, a integração dessa comunidade ao projeto nacional nunca foi linear. O professor e historiador Carlos Piassini conta que no século XX, durante o regime do Estado Novo, liderado por Getúlio Vargas, a repressão atingiu seu auge. Para construir uma identidade nacional homogênea, o governo reprimia manifestações culturais consideradas estrangeiras. Nesse período, o uso do idioma alemão foi proibido em espaços públicos, escolas, igrejas e comércios. Cidades e instituições foram forçadas a mudar de nome, famílias abandonaram os dialetos para não sofrer sanções.
O impacto foi profundo, boa parte da tradição linguística se perdeu, especialmente entre as novas gerações. A partir das décadas de 1970 e 1980, houve a revalorização da cultura alemã. A organização de festas típicas como a Oktoberfest em Santa Cruz do Sul, a Volkfest em Agudo ou os Kerbs, exerceram papel importante. Além de preservar tradições, as celebrações resgataram o orgulho da identidade teuto-brasileira e ajudaram a reposicionar a figura do colono como parte essencial da história e do desenvolvimento do Estado.
Thomas Martin é um dos nomes à frente do grupo de folclore germânico Immer Lustig, em Santa Maria. Descendente de imigrantes, sua família tem raízes na região de Agudo e Cerro Branco, no interior do estado, onde os primeiros antepassados se instalaram ainda no século XIX. “Já estamos na quinta geração desde que chegaram . Eles receberam terras, receberam pouca coisa, pouca ajuda. E minha família veio para Santa Maria em 1983”, conta.
Desde então, Thomas se mantém engajado na preservação das tradições herdadas, através da participação da comunidade luterana, que é essencialmente alemã. Além de participar das atividades do Grupo Folclórico com a esposa e filha, com dança, jantares típicos e bailes, coordena o programa ‘A Hora Alemã’ na Rádio Universidade que traz notícias, agenda cultural, culinária e informações da cultura germânica aqui e no mundo.

“A cultura não tem fronteira. A gente gosta da cultura, as pessoas que estão conosco gostam e a manutenção dela se dá por histórias, pela culinária, pela dança e canto. É uma tradição que aprendi desde pequeno e que a gente tenta perpetuar”, destaca Thomas.
Para Sônia Maria Eisinger Guimarães, professora aposentada, e Erika Irmgart, odontóloga aposentada, irmãs e descendentes diretas de alemães, quando se fala dos antepassados as lembranças vêm temperadas pelo aroma da comida. O sabor da memória está no chucrute, na cuca e no salsichão aferventado. “A parte da minha mãe tinha inclusive os potes para fazer as garrafas de chucrute. Só ela fazia, porque é um processo que exige técnica e um lugar frio”, recorda Erika.
A relação com a Alemanha vai além do paladar. Está também na religiosidade, no jeito de celebrar o Natal. “A gente fazia a árvore de Natal com pinheiro de verdade dia 24 e o pai tinha o hábito de ler a Bíblia. A gente fazia a passagem do nascimento de Jesus. Então esse hábito me marcou bastante”, contam com saudade visível nos olhos.
Um Legado Que Se Transforma Com O Tempo
A celebração dos 200 anos da imigração alemã não diz respeito apenas ao passado, ela convida à reflexão sobre o Brasil de hoje. Revela a força de um país moldado pela diversidade, onde diferentes culturas se encontram e se integram.
O caso da imigração alemã no Sul do Brasil é um exemplo de como a manutenção das tradições foi possível, mesmo diante de repressões e silenciamentos. O encontro entre etnias, histórias e ancestralidades não gera apenas choques, mas também novas formas de viver, pensar e celebrar. Para que esse legado siga vivo, é fundamental que as novas gerações conheçam sua história, valorizem a memória e compreendam que a cultura não é estática, ela se renova a cada ciclo, preservando o passado e abrindo espaço para o futuro.








