Há silenciosas encruzilhadas no exercício da Medicina que não aparecem nos prontuários, nas guias de procedimentos, nem nos protocolos de atendimento. Elas surgem no instante em que o paciente diz “não”, e o médico precisa continuar sustentando o “sim” ético que sua profissão exige. Entre essas duas palavras tão simples e tão densas nasce um dos dilemas mais complexos da prática contemporânea: a recusa terapêutica. Não há quem exerça a Medicina sem sentir, em algum momento da carreira, o desconforto desse limite; e não há quem atue no Direito Médico que não reconheça, com respeito, o peso moral desse enfrentamento.
O discurso da autonomia, na verdade, nunca foi simples. É sedutor imaginá-la como soberania absoluta do indivíduo sobre seu corpo, mas a realidade clínica e jurídica é sempre mais rugosa do que a teoria liberal que a inspirou. Emmanuel Levinas já advertia que a ética nasce “no rosto do outro”, naquela responsabilidade silenciosa que surge antes mesmo da vontade. No consultório, essa responsabilidade antecede a assinatura em termos, antecede as recomendações técnicas e antecede a própria ciência. O médico vê o outro vulnerável antes que o outro reivindique autonomia. E é precisamente por isso que a autonomia do paciente, embora essencial e constitucionalmente sustentada, jamais se confunde com soberania.
A Resolução CFM nº 2.232/2019, cuja densidade ética e filosófica a coloca como marco normativo contemporâneo, explicita esse ponto de maneira inequívoca: a recusa terapêutica só existe como direito porque ela pressupõe um médico que informa, esclarece, registra, adverte e protege. É a autonomia do paciente, mas só se concretiza pela responsabilidade do médico. A autonomia não é um abandono da técnica; é um convite para uma comunicação madura. Como lembra Hardy-Vallée, conceitos só têm sentido quando preservam sua função e não se tornam abstrações vazias: autonomia sem compreensão, sem contexto e sem capacidade é apenas um rótulo, e rótulos nunca sustentaram decisões clínicas complexas.
É importante recordar, nesse ponto, o que exatamente configura a recusa terapêutica: trata-se da manifestação expressa, livre e esclarecida do paciente: maior, capaz, lúcido e consciente, de não se submeter à terapêutica indicada pelo médico para um tratamento eletivo. Ela se aplica quando o paciente compreende plenamente riscos, consequências ealternativas, e decide assumir os possíveis desfechos. Contudo, esse direito não é absoluto: pode ser mitigado quando há incapacidade cognitiva, risco iminente à vida, situações de urgência e emergência, ou quando a recusa caracteriza abuso de direito, especialmente quando expõe terceiros, a coletividade, ou o próprio feto, no caso de gestantes.
Dentro dessa moldura conceitual, o Código de Ética Médica, a Resolução CFM nº 1.995/2012 (sobre diretivas antecipadas de vontade) e a própria Constituição, ao reconhecerem a dignidade como fundamento da República, constroem um sistema que exige mais do médico do que simplesmente respeitar escolhas. Exigem discernimento. Exigem registro. Exigem método. Exigem coragem ética. Como bem expõe Sarlet, a dignidade é simultaneamente limite e fundamento: ela impede excessos estatais e profissionais, mas também impede omissões que coloquem a vida e a integridade em risco. É nesse duplo movimento, proteger sem violentar, intervir sem anular que se desenha a atuação médica diante da recusa terapêutica.
O médico, portanto, não é mero espectador da autonomia do paciente. Ele é o seu fiador. Sem ele, a autonomia não amadurece. Sem ele, não há escolha livre; há apenas abandono. A Resolução 2.232/2019 reforça que a recusa só se sustenta quando o paciente é maior, capaz, lúcido, orientado e consciente e que, quando há vulnerabilidade cognitiva ou risco relevante à saúde, o dever de proteção se sobrepõe. Pontes de Miranda criticava duramente o fetichismo normativo: leis não transformam realidade quando ignoram o mundo concreto. No campo médico, isso significa que autonomia não pode ser transformada em dogma especialmente quando a dor, o medo, a confusão mental ou um quadro agudo comprometem a capacidade de decidir.
Nesse cenário, surge o dilema que apenas quem vive a prática compreende: como equilibrar respeito à vontade do paciente e a obrigação ética de protegê-lo? O médico se vê dividido entre o dever de preservar autonomia e o medo legítimo de ser responsabilizado por omissão. Esse conflito não é fraqueza é expressão da maturidade moral da profissão. E, felizmente, não precisa ser enfrentado sozinho: a assessoria jurídica especializada existe justamente para ajudar o médico a navegar essas fronteiras éticas, sociais, culturais e bioéticas com segurança, amparo técnico e serenidade.
O debate torna-se ainda mais sensível quando lembramos o emblemático caso da paciente que, por convicção religiosa, recusou transfusão sanguínea. O médico, ciente da gravidade, advertiu exaustivamente sobre os riscos, explicou alternativas possíveis, envolveu a família e buscou, com diligência ética, uma solução compatível com a fé da paciente. Não havia, naquele hospital, o tratamento alternativo recomendado e, por respeito àautonomia e à dignidade da paciente, ela foi transferida para outro serviço que o oferecia. Apesar de todos os esforços, não resistiu. O médico e o hospital foram processados por omissão, como se proteger a autonomia fosse sinônimo de abandonar o cuidado. Esse caso expõe, com dureza, a injustiça que muitas vezes recai sobre o profissional: ele cumpre a ética, cumpre a ciência, cumpre a lei, e ainda assim enfrenta a distorção retrospectiva do julgamento jurídico. Por isso, a documentação não é mero formalismo, é salvaguarda narrativa de uma verdade que, sem o prontuário meticuloso, facilmente se apaga diante da retórica acusatória. Na recusa terapêutica, não basta agir eticamente: é preciso registrar eticamente.
No cotidiano hospitalar, a recusa terapêutica se revela menos como um ato jurídico e mais como um encontro humano tenso, por vezes sofrido. Médicos me relatam diariamente que é nesse momento que mais temem: não o procedimento em si, mas o registro incompleto, a narrativa mal construída, a impressão de “omissão” que um prontuário lacônico pode sugerir anos depois. E aqui reside a responsabilidade compartilhada: o paciente tem direito de recusar, mas o médico tem o dever de registrar. A assinatura no termo não é burocracia; é proteção ética. Simone Weil dizia que “a atenção profunda é a forma mais rara e pura de generosidade”. No Direito Médico, atenção profunda é prontuário detalhado, conversa reiterada, advertência clara e termo de recusa documentado com precisão.
A autonomia, vista sob esse prisma ampliado, não é violência à autoridade médica. Pelo contrário: é a possibilidade de exercer essa autoridade com mais maturidade, consciência e respaldo. A objeção de consciência, outro pilar da Resolução 2.232/2019, protege o profissional quando o pedido do paciente colide com sua integridade moral ou com as boas práticas reconhecidas pela ciência. Douzinas, ao tratar da dignidade como capacidade de reivindicação, lembra que os direitos fundamentais não protegem apenas a liberdade de escolha, mas também a liberdade de não executar o que viola consciência. Nesse equilíbrio fino, a Medicina permanece ética.
A prática mostra, ainda, que o verdadeiro risco jurídico não é a recusa, é o silêncio. São os registros genéricos, a ausência de advertências, os diálogos que não aparecem no prontuário. São os “paciente orientado” que nada orientam; os “recusou” que nada explicam; os “conversado” que não são, de fato, conversas registradas. Não é a recusa que condena o médico; é o vazio narrativo. No Direito Médico contemporâneo, quem domina a narrativa documental transforma risco em segurança.
E, por mais que a independência do paciente seja protegida pelo Código Civil, pela Constituição e por decisões históricas como Schloendorff v. Society of New York Hospital, a ética brasileira, especialmente após a Resolução 2.232/2019, exige que essa independência seja acompanhada por clareza, responsabilidade e prudência. Como ensinou o próprio Kant, liberdade sem lei não é liberdade: é arbítrio. Na saúde, isso significa que a autonomia exige estrutura.
Aos médicos, o conselho final não é de temor, mas de lucidez. A recusa terapêutica não precisa ser vista como ameaça, e sim como momento de reforço ético da profissão. A dignidade do paciente não se opõe à dignidade do médico; ambas se fortalecem quando há comunicação verdadeira, registro cuidadoso, empatia atenta e consciência jurídica. Não se trata apenas de proteger-se de litígios, mas de exercer a Medicina com profundidade moral.
Eu, como advogada que defende médicos, mas jamais esqueço, também, do paciente, deixo um convite firme, humano e profundamente técnico: tratem a recusa terapêutica não como um gesto de oposição, mas como espaço de construção. O médico não abandona, não silencia, não se omite. Documenta. Esclarece. Orienta. Reflete. E permanece.
Porque, no fim das contas, autonomia não dispensa responsabilidade. E responsabilidade, quando bem cumprida, não teme autonomia.
Por Eizzi Benites Melgarejo, advogada OAB/RS 86.686 – especialista em defesa médica e privacidade – sócia do escritório Urach, Jensen, Abaide, Melgarejo e Brum.








