O episódio ocorrido em Cuiabá, no dia 19, no qual um delegado de polícia deu voz de prisão em flagrante a um médico residente durante uma consulta pré-cirúrgica, expõe algo que ultrapassa o mero equívoco interpretativo: revela o ponto exato em que a autoridade deixa de servir à lei para servir a si mesma.
A cena um profissional regularmente inscrito no CRM, atuando dentro dos limites normativos da residência médica, ser constrangido, detido e conduzido à delegacia sob alegação de exercício ilegal da medicina não é apenas absurda. É sintomática. E, como todo sintoma, diz mais sobre o corpo institucional do que sobre o fato isolado.
O médico residente, devidamente formado e registrado, realizou anamnese, preencheu formulários, conduziu avaliação clínica e atuou sob supervisão do serviço, tal como determinam o Conselho Federal de Medicina, a Comissão Nacional de Residência Médica e a legislação vigente. A residência médica é modalidade de especialização reconhecida como exercício profissional, e seus integrantes têm autonomia para atendimento pré-anestésico, desde que inseridos na rotina hospitalar e supervisionados pelo serviço, exatamente como ocorreu. Ainda assim, ao ser atendido por um homem quando acreditava que seria atendido por uma mulher, e ao questionar a ausência de título de especialista no registro, o delegado deixou o consultório, retornou e decretou a prisão do profissional.
Não há, no ordenamento, qualquer fundamento que sustente tal conduta. A lei brasileira exige apenas duas coisas para o exercício da medicina: diploma e registro no CRM. Especialidade não é autorização para existir como médico, mas apenas certificação adicional. O art. 282 do Código Penal criminaliza quem exerce profissão sem autorização legal, o que não é o caso de um médico regularmente inscrito. Não houve fraude, não houve risco, não houve imperícia. Houve, sim, uma tentativa de transformar o consultório em palco de autoridade pessoal.
A situação agravou-se quando o delegado recolheu prontuários médicos como supostas “provas”. É evidente o abuso, a violação, inclusive do sigilo médico: cuja quebra só é possível mediante ordem judicial. O sigilo não é luxo ético: é garantia constitucional de dignidade. Prontuário não é troféu para demonstrações de poder.
Mas, talvez, o ponto mais inquietante seja o reflexo institucional desse episódio. A prisão arbitrária de um médico habilitado não ocorre no vácuo. Ela ecoa uma tendência contemporânea: a transformação do poder estatal em instrumento de vaidade, capricho ou indignação individual, em vez de instrumento de legalidade. O CRM-MT anunciou que representará contra o delegado, e esse gesto é necessário, mas seria ingênuo fingir que estamos diante apenas de uma distorção isolada. O que se viu ali, e o que muitos têm visto, em diferentes esferas públicas é a fronteira tênue entre autoridade e autoritarismo, entre o dever de proteger e o impulso de dominar.
É nesse ponto que a advertência de Martin Luther King ressoa com desconfortável atualidade: “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.” No caso do médico residente, ao menos houve reação institucional imediata: o Conselho se posicionou, repudiou a conduta, anunciou providências e garantiu algum grau de proteção ao profissional atingido. Existe, ainda que timidamente, uma expectativa de correção, um vislumbre mínimo de justiça.
Mas nem todo abuso recebe resposta. Nem toda arbitrariedade encontra resistência. E, em muitos episódios da vida pública recente, o país assistiu (e assiste) em silêncio, ou quase ao uso expansivo, performático e personalista do poder estatal, enquanto a legalidade, que deveria ser bússola, tornou-se mero detalhe. Não precisamos citar todos os fatos, mas para bom entendedor, meia palavra basta.
Quando um delegado prende um médico regular, dentro da lei, por puro senso de autoridade, o abuso é evidente e reprovável. Mas quando certos excessos se originam de esferas mais altas, dotadas de prestígio e revestidas de solenidade, o desconforto coletivo parece maior do que a coragem de enfrentá-los. Há momentos em que a sociedade engole em seco a injustiça porque entende ou teme que nada mais pode ser feito. Há instantes em que a força do cargo suplanta a força da norma, e o arbítrio veste a roupa da legitimidade. Tudo isso permanece velado, mas palpável, presente, quase gritante para quem lê o Brasil com mínima atenção crítica. Poderíamos, sim, dizer que há uma síndrome do “pequeno poder”, mas nem sempre o poder é “tão pequeno”.
Nietzsche advertiu que “quem luta com monstros deve cuidar para não se tornar um deles”. O Estado, quando abandona seus limites e passa a agir movido por impulsos individuais, cai precisamente nessa armadilha. E, paradoxalmente, os mais vulneráveis nessa lógica são aqueles que sustentam o funcionamento das instituições, como os médicos residentes, linha de frente em hospitais, sobrecarregados, exaustos e, ainda assim, invisíveis. Transformar um ambiente de cuidado em cenário de coerção é mais do que equívoco: é sinal de decadência e doença institucional.
Não houve notícia de erro técnico, falha clínica ou conduta que justificasse intervenção policial. O que houve foi um grotesco erro jurídico, cometido por quem deveria zelar pelo Direito, e abuso de poder, perpetrado por quem deveria, justamente, respeitar seus limites. Defender o Estado de Direito, nesse contexto, não é discurso abstrato; é necessidade concreta. E fazê-lo exige coragem suficiente para denunciar, ainda que de forma velada, a tendência crescente de substituir leis por vontades e constitucionalidade por conveniência.
O caso do médico residente, assim, é pedagógico. Mostra que a democracia não se sustenta apenas pela proteção de grandes atos, mas pela vigilância nos pequenos. Mostra que a justiça não se mede pelo volume da voz, mas pela contenção do poder. E mostra que o Brasil atravessa um período em que, mais do que nunca, é preciso lembrar que hospital não é palco de demonstração de força, prontuário não é troféu policial, e autoridade quando divorciada da lei deixa de ser proteção para se tornar risco.
O Residente, de muito longe, não é o criminoso. E nenhum país que deseje preservar sua maturidade institucional pode tolerar que se confundam divergências pessoais com exercício do poder estatal.E, para quem talvez não tenha entendido tudo, esse texto NÃO é só sobre médicos e delegados. E, novamente, para bom entendedor, meia palavra basta.
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Excelente texto,mostra o abuso de autoridades em nome do estado democrático de direito. Estão se escondendo atrás desta terminologia para usar suas subjetividades em prol de seus próprios anseios. Por mais textos assim. Parabéns!