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A fiança nos contratos de locação: o peso do desconhecimento

A fiança é um dos institutos mais tradicionais e, ao mesmo tempo, mais mal compreendidos do direito obrigacional brasileiro. Prevista no Código Civil (arts. 818 a 839) e amplamente utilizada nos contratos de locação regidos pela Lei nº 8.245/91 (Lei do Inquilinato), a fiança consiste na promessa de um terceiro, o fiador, de assumir o cumprimento das obrigações do locatário caso este não as satisfaça. Em termos simples, trata-se de uma garantia pessoal: não são os bens do devedor que respondem em primeiro plano, mas sim o patrimônio de quem se dispõe a ser fiador.

O Código Civil prevê, em favor do fiador, o chamado benefício de ordem (art. 827), segundo o qual ele só deveria ser cobrado depois de comprovada a impossibilidade de o locatário arcar com a dívida. Entretanto, é frequente que os contratos de locação contenham cláusula de renúncia expressa a esse benefício, tornando a responsabilidade do fiador imediata e solidária, o que permite ao locador demandá-lo diretamente sem antes esgotar os meios contra o devedor principal. Essa é uma das grandes armadilhas da prática contratual, muitas vezes pouco explicada ou até desconhecida de quem se dispõe a assumir a obrigação.

Outro ponto crucial é que o fiador não responde por aditamentos, transações ou confissões de dívida firmados pelo locatário sem a sua anuência. Essa proteção decorre tanto do art. 838, I, do Código Civil que prevê a exoneração da fiança quando o credor concede moratória ou transige com o devedor sem consentimento do fiador, quanto da jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça, cuja Súmula 214 dispõe que “o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”. Trata-se de regra que busca evitar a expansão automática da responsabilidade de quem já assumiu um encargo grave.

Além disso, a Lei do Inquilinato impõe regras específicas que tornam a fiança ainda mais rigorosa. O art. 39 da Lei nº 8.245/91 estabelece que a fiança se prorroga até a entrega efetiva das chaves, salvo se o fiador, de forma expressa, requerer sua exoneração. Mesmo nesse caso, a exoneração só produzirá efeitos após 120 dias da notificação, permanecendo o fiador responsável pelas obrigações vencidas nesse período. Essa regra, muitas vezes ignorada, revela o quanto a obrigação fidejussória pode se alongar no tempo, mesmo quando o fiador não deseja mais permanecer vinculado.

Não se pode negar que a fiança cumpre relevante função social ao viabilizar a locação de imóveis, dando ao locador segurança para celebrar contratos. O problema não está no instituto, mas na forma como é apresentado ao cidadão comum: como um gesto de confiança, quase um favor, mas que, juridicamente, implica riscos patrimoniais severos. É frequente que o fiador só se dê conta da gravidade da obrigação quando já está sendo executado, correndo risco inclusive sobre o imóvel em que reside.

Por isso, a orientação prévia é essencial. Procurar um advogado antes de assinar não é mero formalismo: é garantia de compreensão sobre o alcance das cláusulas, sobre a existência ou não de renúncia ao benefício de ordem, sobre a extensão da responsabilidade e sobre os meios de exoneração. E, no pior cenário, se já houver uma demanda judicial ou cobrança, torna-se ainda mais indispensável buscar apoio técnico para analisar nulidades, abusos contratuais ou meios de defesa cabíveis.

Por fim, cabe lembrar que, se o fiador for compelido a pagar a dívida, a lei lhe assegura o direito de regresso contra o locatário (art. 831 do Código Civil). Ao quitar a obrigação, o fiador se sub-roga nos direitos do credor e pode cobrar do devedor principal tudo o que desembolsou. Na teoria, trata-se de um mecanismo de equilíbrio; na prática, nem sempre esse direito é eficaz, especialmente quando o locatário já se encontra insolvente ou quando a relação pessoal desestimula a cobrança.

A fiança, portanto, exige cautela, informação e reflexão. Mais do que um ato de solidariedade, ela é uma decisão jurídica de alto impacto, que pode comprometer o patrimônio de uma vida inteira. Ao Direito cabe buscar mecanismos de equilíbrio entre locador e fiador; e ao cidadão, cabe não assinar sem entender, para que a boa intenção de ajudar não se transforme em um fardo solitário e desproporcional.

Reinaldo Guidolin

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