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A força da água, a fragilidade da terra: o caso do Rio Soturno e o que ele revela sobre nossos rios

Poucos dados são tão simbólicos do momento ambiental que vivemos quanto os revelados nestas últimas semanas sobre o Rio Soturno, um dos principais cursos d’água da região central do Rio Grande do Sul. Segundo levantamento da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), as enchentes de maio de 2024 destruíram 70% das matas ciliares ao longo do rio e alteraram 31% do seu curso natural. Em outras palavras: a natureza respondeu com força a décadas de abandono e uso desenfreado do solo, e o impacto foi brutal, para o ecossistema, para a segurança da população e para o futuro da bacia hidrográfica.

As matas ciliares são formações vegetais localizadas às margens dos rios e nascentes. Elas funcionam como barreiras vivas que protegem os cursos d’água da erosão, filtram sedimentos, absorvem parte da água da chuva e ajudam a estabilizar o solo. Quando estão intactas, são aliadas indispensáveis contra enchentes e assoreamento. Mas quando são desmatadas, substituídas por lavouras, pastagens ou construções urbanas, o rio perde sua contenção natural — e o solo, sua resistência. O que sobra, então, é um cenário de vulnerabilidade extrema, como o que vimos em maio.

O caso do Rio Soturno não é isolado. Ele apenas escancarou, com dados concretos, o que já se observa em praticamente todos os rios da região: margens desprotegidas, uso do solo desordenado, ausência de políticas de recuperação e fiscalização frágil. E quando a chuva chega, e ela virá cada vez com mais intensidade, como já alertam os cientistas, o solo cede, a água leva tudo, o leito do rio muda, comunidades são atingidas, e a conta, como sempre, fica para os mais vulneráveis.

Diante disso, o Governo do Estado lançou o programa Desassorear RS, voltado à retirada de sedimentos acumulados em pequenos rios, arroios e sistemas pluviais. Desde o início do programa, mais de 40 mil metros cúbicos de sedimentos já foram removidos de pontos críticos em diferentes municípios. A medida, segundo o governo, visa minimizar os efeitos das chuvas intensas e melhorar a capacidade de escoamento da água em regiões urbanas.

Embora ações emergenciais como essa sejam necessárias em um contexto de crise, é fundamental reconhecer que desassorear sem restaurar as matas ciliares e proteger o solo é uma medida paliativa e temporária. Sem vegetação nas margens e com o solo exposto, os sedimentos voltarão a se acumular com a mesma rapidez. A cada nova enxurrada, os rios assoreiam de novo e o ciclo se repete, consumindo recursos públicos e ampliando os danos.

O programa Desassorear pode e deve ser um braço de um esforço mais amplo de recuperação ambiental. Mas não pode ser o único. É preciso investir, de forma estruturada, na restauração da vegetação nativa, na contenção de áreas erodidas, em incentivos para práticas de uso sustentável do solo e em educação ambiental nas comunidades. Também é urgente aplicar critérios ambientais mais rigorosos no planejamento urbano e agrícola, considerando a fragilidade das bacias hidrográficas.

A destruição das matas ciliares do Rio Soturno nos dá uma oportunidade clara: observar em tempo real os efeitos do descaso ambiental e agir com base no que a ciência já sabe há décadas. Não podemos mais tratar as margens dos rios como espaço “vago” ou “produtivo”. Elas são zonas de vida, de equilíbrio, de resiliência. Se continuarmos negligenciando isso, não haverá escavadeira que dê conta de desassorear o que a natureza já deixou de sustentar.

É hora de irmos além da reação. Que as perdas do Soturno sirvam de ponto de inflexão para repensarmos nossas políticas hídricas. Recuperar matas ciliares é proteger o curso dos rios, a estabilidade do solo, a vida silvestre e, sobretudo, as pessoas. É garantir que os rios continuem existindo como caminhos de vida e não como canais de destruição. É entender que não basta remover o que o rio carrega, se continuarmos permitindo que ele carregue tudo. A água tem memória, e ela está nos cobrando. Nos cobrando coragem política, investimento técnico, planejamento ambiental e compromisso com o futuro. Cada margem reconstituída, cada área reflorestada, cada ação de contenção de erosão é um passo para reduzir perdas humanas, sociais e ecológicas. Que não deixemos a próxima enchente ser apenas mais um capítulo da repetição, mas sim o fim de um ciclo de negligência e o início de um tempo de reparação.

Redação enFoco

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