A execução civil, embora necessária à efetividade da jurisdição, não pode ser instrumento de injustiça social. Em um país de dimensões continentais como o Brasil, onde o meio rural ainda sustenta grande parte da economia e da cultura nacional, a proteção da pequena propriedade rural adquire especial relevo. O legislador, atento a essa realidade, consagrou no ordenamento jurídico a impenhorabilidade da pequena propriedade rural trabalhada pela família, erigindo-a à categoria de garantia constitucional.
A previsão, constante do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição Federal, e reiterada no art. 833, VIII, do Código de Processo Civil, reflete o compromisso do Estado com o mínimo existencial e com o princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se de reconhecer que o devedor rural não é mero inadimplente: ele é, muitas vezes, o guardião da subsistência familiar e da função social da terra, e ainda acima de tudo o produtor rural é quem tem o condão de preserver a segurança alimentar do mundo.
Contudo, a aplicação prática dessa proteção ainda suscita controvérsias, sobretudo diante da realidade das execuções bancárias e fiscais. O presente artigo propõe-se a discutir o alcance e os limites dessa impenhorabilidade, contextualizando-a à luz da jurisprudência e da doutrina contemporânea.
O art. 5º, XXVI, da Constituição Federal dispõe que: “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva.”
A norma tem caráter autoaplicável, sendo norma de eficácia plena, pois protege diretamente o bem essencial à sobrevivência da família rural. A ideia central é a de que ninguém deve ser privado dos meios mínimos de subsistência, mesmo que inadimplente. Em outras palavras, o Estado não pode permitir que a execução de uma dívida destrua o modo de vida do executado e o condene à miséria.
O Código de Processo Civil (art. 833, VIII) repete e amplia essa proteção, ao prever que é impenhorável: “a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família.”
Duas condições, portanto, devem coexistir: (i) que o imóvel seja pequena propriedade rural, nos termos da legislação vigente — ou seja, com área de até quatro módulos fiscais (que depende do estabelecido em cada municipio); e (ii) que seja trabalhada pela família, ou seja que o sustento da família seja retirado da pequena propriedade, não sendo obrigatório morar no local.
O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que a impenhorabilidade da pequena propriedade rural é oponível a qualquer tipo de dívida, inclusive aquelas contraídas para a própria atividade produtiva. A tese foi firmada em sede de recursos repetitivos, onde o Tribunal decidiu que: “A pequena propriedade rural, assim definida em lei, é impenhorável, ainda que dada em garantia hipotecária, desde que seja comprovado que a família a explora diretamente.”
Esse entendimento representou uma virada paradigmática: até então, muitos julgados admitiam a penhora quando o próprio agricultor havia oferecido o bem em hipoteca, sob o argumento de renúncia à impenhorabilidade. O STJ, contudo, reafirmou que não é possível renunciar a direito de natureza constitucional destinado à proteção da dignidade humana e da função social da propriedade.
A impenhorabilidade da pequena propriedade rural transcende a esfera patrimonial: trata-se de garantir o mínimo existencial do produtor e sua família, conceito extraído do art. 1º, III, e art. 6º da Constituição Federal. O direito à moradia, ao trabalho e à alimentação estão intrinsecamente ligados à preservação do imóvel rural familiar.
Essa proteção não é privilégio, mas expressão da justiça social. O pequeno agricultor, ao contrário do grande devedor estratégico, raramente possui outro patrimônio. Penhorar-lhe a terra é, em última análise, privá-lo de sua dignidade e destruir o meio de produção que garante a sua sobrevivência e do seu núcleo familiar.
Apesar do arcabouço constitucional e jurisprudencial, muitos magistrados ainda resistem à aplicação da impenhorabilidade em execuções rurais, sobretudo nas ações bancárias. Essa resistência decorre, em parte, da falsa percepção de que o crédito deve prevalecer sobre qualquer outro valor jurídico, esquecendo-se que a dignidade da pessoa humana é o vetor máximo da Constituição.
Na prática, é comum que instituições financeiras busquem a penhora do imóvel sob o argumento de que o débito decorre de “atividade produtiva”, ou que o devedor “renunciou” ao benefício ao assinar contrato de hipoteca. Contudo, o STJ tem repelido tais teses com consistência.
A impenhorabilidade da pequena propriedade rural é muito mais que uma regra processual: é instrumento de preservação da dignidade humana, garantia do mínimo existencial e afirmação da função social da terra. Ela concretiza a promessa constitucional de que a execução não pode ser um ato de destruição, mas de equilíbrio entre credor e devedor.
Num cenário em que o agronegócio domina o noticiário, é preciso lembrar que o pequeno agricultor — aquele que acorda com o sol, planta com as próprias mãos e alimenta o país — também merece justiça. E justiça, neste caso, significa não arrancar-lhe o chão debaixo dos pés.
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