O direito à prestação de alimentos, especialmente em favor de crianças e adolescentes, representa uma das expressões mais concretas da dignidade da pessoa humana. Garantir o sustento material de quem ainda não possui autonomia para sobreviver por meios próprios é obrigação que transcende a esfera contratual ou patrimonial — trata-se de um dever jurídico, moral e social. Entretanto, no cotidiano forense, não são raros os casos em que a obrigação alimentar é distorcida ou esvaziada pela conduta estratégica de devedores que alegam hipossuficiência enquanto ostentam, publicamente, padrão de vida elevado. Frente a esse cenário, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 2.126.879/SP, consolidou um importante precedente ao reconhecer a licitude da quebra de sigilo fiscal do devedor de alimentos, como meio legítimo de garantir a efetividade da obrigação e a proteção do alimentando.
A fixação dos alimentos, conforme preceitua o artigo 1.694, §1º do Código Civil, deve observar o binômio necessidade do alimentando e possibilidade do alimentante. Em tese, isso pressupõe a boa-fé de ambas as partes, especialmente do devedor, ao declarar sua real condição financeira. No entanto, é cada vez mais comum a tentativa deliberada de ocultar rendimentos ou patrimônio, por meio de expedientes como a declaração formal de desemprego ou ausência de atividade remunerada, enquanto atua como sócio oculto em empresas; o registro de bens em nome de terceiros; a utilização de veículos, imóveis e cartões de crédito de titularidade de familiares ou companheiras para mascarar sua capacidade econômica; além da ostentação pública de viagens, jantares, roupas de marca e itens de luxo, frequentemente expostos em redes sociais, sem que se encontrem compatíveis com as alegações constantes nos autos. Essa dissociação entre o que se declara judicialmente e o que se vive na prática tem servido como estratégia para fugir à responsabilidade alimentar, criando um descompasso entre o que é justo e o que é possível alcançar processualmente.
No caso julgado pelo STJ, a genitora do menor buscava demonstrar que o genitor, embora alegasse não possuir renda formal, mantinha padrão de vida incompatível com a hipossuficiência declarada. A quebra de sigilo fiscal foi requerida com o objetivo de apurar os rendimentos efetivos e permitir a adequada fixação ou revisão da pensão alimentícia. O Tribunal reconheceu a medida como legítima e proporcional, destacando que o direito à intimidade cede espaço quando confrontado com o direito fundamental do alimentando à sobrevivência digna. O relator, destacou que o processo judicial não pode servir de palco para simulações patrimoniais ou abuso de garantias constitucionais, sob pena de transformar a obrigação alimentar em instrumento de opressão da parte mais vulnerável.
Diante do comportamento cada vez mais recorrente de devedores que se valem da informalidade econômica como subterfúgio para frustrar a execução de alimentos, cabe à advocacia atuar com técnica e proatividade na produção de provas capazes de desnudar a realidade patrimonial do devedor. Entre as medidas possíveis para demonstrar o padrão de vida oculto, destacam-se a requisição de declarações de Imposto de Renda à Receita Federal; a consulta ao Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), para averiguação de vínculos empregatícios formais e contribuições previdenciárias; o pedido de quebra de sigilo bancário ou consulta de movimentações financeiras por meio do sistema BACENJUD; a expedição de ofícios a cartórios de imóveis, Detran, operadoras de cartão de crédito, empresas e associações comerciais; a captura de provas indiretas nas redes sociais, como postagens, check-ins e viagens que revelem consumo incompatível com a renda alegada nos autos; bem como ações de investigação patrimonial com base no artigo 133 e seguintes do Código de Processo Civil, quando houver indícios de fraude ou confusão patrimonial.
Essas medidas devem ser requeridas de forma fundamentada e proporcional, sempre com a devida autorização judicial, mas com a consciência de que o processo civil contemporâneo deve prestigiar a verdade real e o acesso efetivo ao direito material. A decisão do STJ que reconhece a legalidade da quebra do sigilo fiscal do devedor de alimentos representa um avanço civilizatório na proteção dos vulneráveis. Em tempos de intensa desigualdade e judicialização das relações familiares, é necessário que as garantias processuais não sirvam como escudo para comportamentos abusivos ou fraudulentos.
A advocacia, por sua vez, precisa estar preparada para agir com firmeza e estratégia, utilizando os instrumentos legais disponíveis para demonstrar a real capacidade econômica do devedor, rompendo com a cultura da “miserabilidade formal” e resgatando o valor da justiça material. Porque alimentos não são um favor, nem uma negociação moral — são um direito fundamental com reflexo direto sobre a dignidade, o desenvolvimento e a integridade da pessoa humana.
A licitude da quebra de sigilo fiscal do devedor de alimentos: a proteção da dignidade do alimentando frente à simulação patrimonial
Por Eizzi Melgarejo – Advogada especialista em Direito de Família e Sucessões – sócia do escritório Urach, Jensen, Abaide, Melgarejo e Brum