Contratos existem para serem cumpridos. Essa é, sem dúvida, a premissa que sustenta a confiança nas relações jurídicas e econômicas. O princípio do pacta sunt servanda, consagrado há séculos, tem valor não apenas técnico, mas prático: ele garante estabilidade, previsibilidade e segurança jurídica. Não fosse assim, nenhuma relação contratual sobreviveria ao tempo, ao risco ou à simples vontade de uma das partes.
No entanto, a própria complexidade da vida exige que o Direito também reconheça aquilo que é exceção e, especialmente, aquilo que não estava no horizonte quando o contrato foi firmado.
O que a pandemia da COVID-19 fez não foi inventar essa discussão, mas colocá-la sob uma nova lente. A crise sanitária e econômica expôs, em larga escala, situações em que a manutenção literal do contrato geraria efeitos desproporcionais ou até mesmo injustos. Contudo, é importante enfatizar que nem toda dificuldade financeira, por si só, justifica a revisão de um contrato. Rever um contrato não é simples, tampouco automático. É uma medida excepcional, e como tal, precisa ser tratada com seriedade, técnica e cautela.
A possibilidade de revisar contratos já está prevista no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir da teoria da imprevisão, descrita no artigo 478 do Código Civil. Essa teoria admite que, se ocorrer um fato extraordinário, imprevisível e inevitável, que torne a obrigação de uma das partes excessivamente onerosa, o contrato pode ser revisto ou até resolvido. Mas essa análise exige critérios rigorosos. Não basta alegar dificuldade: é necessário comprovar que o desequilíbrio foi real, objetivo e resultante de uma mudança que não poderia ser prevista ou controlada pela parte prejudicada.
Situações como desastres naturais, crises econômicas abruptas, crises setoriais, pandemias, inflação descontrolada ou eventos que alterem significativamente a base econômica do contrato podem justificar a aplicação dessa teoria. Mesmo assim, o Judiciário tem sido cada vez mais criterioso, e corretamente, ao exigir que a parte interessada comprove não apenas o impacto sofrido, mas também que tenha agido com boa-fé, buscado renegociação e evitado o enriquecimento sem causa.
A proporcionalidade é, nesse contexto, um valor fundamental. A revisão contratual não serve para anular o contrato, nem para “aliviar” obrigações assumidas com plena consciência. Ela serve para corrigir distorções graves que surgiram por razões alheias à vontade das partes e que, se ignoradas, comprometeriam o equilíbrio contratual. A ideia não é romper o pacto, mas restaurar a equidade para que ele continue viável.
Vale destacar que a revisão contratual pode, e deve, ser buscada inicialmente de forma consensual entre as partes, por meio do diálogo, da renegociação e da construção conjunta de alternativas viáveis. A autonomia privada permite que as partes reformulem cláusulas contratuais de maneira espontânea, adaptando o contrato à nova realidade de forma rápida e eficiente. No entanto, nem sempre há boa-fé ou equilíbrio entre as partes, e a recusa ao diálogo ou a imposição de condições abusivas tornam o acordo inviável. É justamente nesse cenário que a atuação do advogado se torna essencial: para avaliar juridicamente a situação, proteger os direitos de seu cliente e, se necessário, levar a questão ao Judiciário em busca de uma solução justa e proporcional.
Nesse sentido, a possibilidade de revisão judicial não se limita a contratos empresariais ou de grande vulto. Relações de consumo, frequentemente marcadas pela hipossuficiência do consumidor, também podem ser objeto de revisão judicial, sobretudo quando o cumprimento do contrato em seus moldes originais impõe onerosidade excessiva, viola princípios como o da boa-fé objetiva ou representa desequilíbrio significativo entre as partes. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), assegura expressamente ao consumidor a modificação de cláusulas contratuais que se tornem excessivamente onerosas em razão de fatos supervenientes. Isso reforça a função social dos contratos e o compromisso do Direito com a justiça material.
É aqui que entra o papel estratégico da advocacia preventiva: elaborar contratos robustos, com cláusulas claras, mecanismos de reajuste, previsão de casos fortuitos e força maior, e dispositivos que orientem a conduta das partes diante de imprevistos. Um contrato bem construído não é inflexível, mas preparado. Ele protege, mas também se adapta. Ele cumpre a sua função de garantir segurança jurídica, mas sem ignorar que o contexto pode mudar.
Como advogada, vejo diariamente que há uma linha tênue entre a preservação dos contratos e a necessidade de ajustá-los à realidade. Negar a revisão em qualquer hipótese é ignorar a complexidade da vida. Admiti-la sem critérios é corroer a confiança no Direito. O desafio está justamente nesse equilíbrio: respeitar o que foi pactuado, sem fechar os olhos para situações em que o cumprimento literal se torna injusto, desproporcional ou inviável.
Contratos são instrumentos valiosos e vivos. Merecem ser respeitados, mas também compreendidos em sua dimensão humana. Saber quando cumpri-los à risca e quando ajustar suas cláusulas à nova realidade não é sinal de fraqueza jurídica, mas de maturidade institucional.
O mundo muda. E o Direito, se quiser continuar sendo justo, precisa ter coragem de reconhecer isso.