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A terra de onde a Itália nunca partiu

“Una mattina mi son alzato, o bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao…”

A canção que atravessou o mundo como símbolo de resistência também guarda, para muitos descendentes de italianos, a memória viva de um passado marcado por coragem, despedidas e esperança. Neste ano, o Rio Grande do Sul celebra os 150 anos da imigração italiana, um capítulo essencial da história do estado, iniciado em 20 de maio de 1875, com a chegada das primeiras famílias à antiga Nova Milano, atual município de Farroupilha. Hoje, estima-se que cerca de 3 milhões de gaúchos sejam descendentes de italianos, representando aproximadamente 27% da população estadual.

Mais que histórias, os descendentes de italianos mantêm vivas tradições que atravessam gerações, costumes que hoje moldam o cotidiano, a cultura, gastronomia, e até a economia de diversas regiões do estado. 

O turismo que nasce da história

Um dos exemplos mais vivos dessa herança está na Quarta Colônia de Imigração Italiana, região localizada no Centro do estado, abraçando também,  Santa Maria. Formada pelos municípios de Agudo, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivorá, Nova Palma, Pinhal Grande, Restinga Seca, São João do Polêsine e Silveira Martins, a região foi o primeiro núcleo italiano fora da Serra Gaúcha, e o quarto a ser implantado no estado. Vanessa Binotto, idealizadora do projeto Passeios Quarta Colônia, destaca a importância de transformar a memória em experiência turística:

Hoje, o turismo na Colônia representa, além de uma descoberta, a vivência de uma identidade. A memória está sendo transformada pelos eventos tradicionais, e também pelas novas mídias digitais É essa mistura entre o passado preservado e as novas formas de contar histórias que torna o turismo um instrumento potente de valorização cultural”, comenta Vanessa.

Na Quarta Colônia, as paisagens encantam, mas é a imersão cultural que marca a experiência. As estradas que cortam morros verdes, os vales cercados por parreirais e os pequenos vilarejos com construções centenárias criam um cenário que remete diretamente ao interior da Itália. As casas de pedra, os jardins floridos e as igrejas em estilo europeu preservam não apenas a arquitetura, mas também o espírito das primeiras comunidades que se estabeleceram ali.

Aos 86 anos, Seu Idino Anversa segue como um verdadeiro guardião das tradições, da fé e do espírito comunitário de Silveira Martins, um dos municípios que integram a Quarta Colônia. Com orgulho e devoção, ele preserva os valores familiares e os costumes herdados da cultura italiana: a polenta cremosa, o salame e o queijo caseiro, o vinho servido religiosamente em taças ao meio-dia e ao anoitecer, além de seu compromisso com a Igreja Santo Antônio de Pádua.

Há mais de meio século, Seu Idino sobe, com a mesma constância de sempre, os 72 degraus da torre cilíndrica, a única com esse formato na América Latina, para dar corda ao antigo relógio da igreja. “Toda semana eu subo lá e dou corda. É coisa de oito em oito dias. Pra mim é simples, enquanto eu puder subir, esse relógio não vai parar”, conta, com a serenidade de quem transforma rotina em devoção.

Estudar para lembrar: o legado italiano nas mãos da educação

O processo de resgate dessa memória tem mobilizado universidades e escolas. Projetos acadêmicos desenvolvidos na região, em parceria com moradores e prefeituras, têm buscado mapear tradições, registrar oralidades, preservar acervos fotográficos e promover oficinas de cultura imaterial. Pesquisadores de diferentes áreas vêm contribuindo para que a italianidade do interior gaúcho não se perca com o tempo.

Na UFSM, por exemplo, alunos têm realizado pesquisas sobre arquitetura colonial e educação patrimonial. Um dos destaques é o Projeto de Extensão História, Língua e Cultura de Imigração Italiana na Quarta Colônia, coordenado pelo professor Marcos Daniel Zancan, que desenvolve ações voltadas à valorização da identidade local, como palestras sobre a imigração italiana, cursos de língua vêneta e eventos acadêmicos sobre história e cultura da região. 

Trabalhar essa temática no ambiente universitário, para além do viés folclórico, por meio do ensino, da pesquisa e da extensão, permite aos jovens reconhecer a profundidade e o valor das línguas e culturas de imigração”, comenta Marcos.

Maria Medianeira Padoin, professora e doutora em História, destaca que a comemoração dos 150 anos da imigração italiana vai além da celebração, é também um momento de reflexão e valorização cultural. “Revisitar o processo histórico da cultura é sempre essencial. Os 150 anos nos convidam a lançar um olhar mais atento sobre a riqueza dessa cultura múltipla que nos constitui, além de reforçar a importância dos estudos locais, fundamentais para compreendermos quem somos e de onde viémos”, afirma.

Entre o passado e o futuro

Celebrar esse sesquicentenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul é, acima de tudo, reconhecer a força da ancestralidade e a atualidade de uma cultura que nunca deixou de pulsar. Das canções que embalam festas comunitárias aos vinhos que contam histórias, dos relatos de seu Indino aos projetos nas universidades, tudo se entrelaça na construção de um presente enraizado e de um futuro que honra quem um dia atravessou o oceano para recomeçar.

Como diziam os italianos: “Chi non sa da dove viene, non sa dove andare.” Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai.

Por: Samara Debiasi
Imagens: Idino Aversa e Maria Madianeira Padoin

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