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A violência contra médicos e o colapso ético do sistema de saúde: quando o agressor é sintoma, não causa

A violência contra médicos no Brasil atingiu níveis alarmantes e expõe, de forma contundente, a falência ética e institucional do sistema de saúde. Segundo levantamento recente do Conselho Federal de Medicina (CFM), doze médicos são vítimas de algum tipo de violência todos os dias em estabelecimentos de saúde. Foram 4.562 boletins de ocorrência registrados em 2024, o maior número já documentado. Isso significa que, a cada duas horas, um médico foi alvo de ameaça, injúria, desacato, lesão corporal, difamação ou até furto, dentro de hospitais, prontos-socorros, clínicas, consultórios e outros espaços públicos e privados. Em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, quatro casos foram oficialmente registrados, número que, embora aparentemente modesto, revela uma escalada de hostilidade contra quem exerce a medicina em condições cada vez mais adversas.

O problema, porém, não é apenas estatístico, é simbólico e cultural. Vivemos uma época em que a saúde pública se tornou palco de discursos populistas e de uma crescente intolerância social. O médico, que outrora era figura de autoridade e respeito, passou a ser retratado como o vilão de um sistema falido. A população, saturada de promessas não cumpridas e do colapso estrutural da rede pública, encontrou no profissional da saúde o bode expiatório ideal para a frustração coletiva. Políticos e influenciadores, movidos mais pelo interesse em capitalizar indignações do que por buscar soluções, invadem hospitais, filmam médicos exaustos em repouso, publicam vídeos distorcidos nas redes e transformam a realidade em espetáculo. A violência simbólica, amplificada pela internet, alimenta o ódio e legitima a agressão. O médico deixa de ser visto como o profissional que enfrenta diariamente o caos do sistema e passa a ser percebido como a personificação do próprio caos.

Essa degradação moral da imagem do médico culminou na necessidade de uma resposta institucional. Em 2 de setembro de 2025, o CFM editou a Resolução nº 2.444/25, reconhecendo expressamente o direito do médico de exercer sua atividade em ambiente seguro. O óbvio, mas uma vez precisou ser dito. O artigo 2º é categórico: “É direito do médico exercer sua atividade profissional em ambiente que assegure sua integridade física e mental, incumbindo aos gestores e responsáveis técnicos a adoção de medidas necessárias.” O texto inaugura um marco regulatório fundamental ao impor responsabilidade direta aos diretores técnicos e gestores de unidades de saúde pela proteção dos profissionais.

A resolução determina medidas concretas de segurança, como videomonitoramento, controle biométrico de acesso, áreas de refúgio, rotas de fuga, estacionamentos seguros e botões de pânico, além de prever suporte  ao médico agredido. A unidade de saúde deve notificar o Conselho Regional de Medicina sobre qualquer ocorrência de violência, orientar o profissional sobre as providências cabíveis e auxiliá-lo no registro policial. Mais do que uma norma técnica, trata-se de uma reação ética ao abandono institucional que há décadas assola a categoria.

O diretor técnico, por sua vez, passa a ser figura central na responsabilização: é seu dever impedir o acesso de pessoas não autorizadas a áreas restritas, como centro cirúrgico, pronto-atendimento, enfermarias, UTIs, consultórios e repousos médicos. Se essa obrigação não for cumprida, a unidade poderá sofrer interdição ética e o caso deve ser comunicado às autoridades policiais. Essa previsão busca coibir práticas cada vez mais frequentes, em que indivíduos  muitas vezes sem qualquer vínculo com o serviço adentram ambientes hospitalares, filmam pacientes e profissionais e expõem dados e situações sensíveis, violando frontalmente a intimidade e a segurança institucional.

No entanto, o aspecto mais grave dessa realidade é o linchamento digital. O mesmo estudo do CFM aponta que 6% das ocorrências (256 casos) decorreram de agressões virtuais, como calúnia, difamação e ameaças pela internet. O fenômeno das redes sociais transformou-se em tribunal paralelo, onde médicos são julgados sem perícia, sem contraditório e sem defesa. As consequências vão muito além do dano moral: a reputação profissional, construída em anos de dedicação, pode ser destruída em minutos. Diante disso, o apoio jurídico especializado torna-se essencial. Não apenas para representar o médico após o dano, mas para atuar preventivamente, instruindo-o sobre medidas de segurança digital, coleta de provas, registro de ocorrências e comunicação adequada com órgãos de classe.

Sob o ponto de vista jurídico, o Estado e as instituições de saúde têm dever legal e ético de proteger o exercício da medicina. O direito do profissional à integridade física, mental e moral decorre não apenas da Resolução do CFM, mas dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e da saúde como direito de todos e dever do Estado. Permitir que o médico exerça sua profissão sob medo é negar o próprio direito fundamental à saúde, pois nenhum sistema será eficiente se quem o sustenta está adoecido, desamparado e vulnerável.

É preciso compreender que a violência contra médicos é sintoma, e não causa, do colapso da saúde pública. Ela nasce de uma sociedade que desumaniza quem cuida, de uma cultura que banaliza a agressão e de um poder público que terceiriza responsabilidades. Enquanto o discurso público continuar invertendo os papéis  retratando o médico como culpado pelos erros estruturais do Estado, permaneceremos presos nesse ciclo de hostilidade e descrédito.

A Resolução nº 2.444/25 representa um avanço jurídico e ético, mas não pode ser vista como solução isolada. A sua efetividade dependerá de fiscalização rigorosa, protocolos institucionais de segurança e uma mudança cultural profunda, que devolva ao médico o respeito e a proteção que sua função exige. O Direito, por sua vez, deve assumir papel ativo nesse processo, não apenas reprimindo as agressões, mas reconstruindo a confiança social entre profissionais e pacientes.

Em última análise, a violência contra médicos revela o quanto a sociedade brasileira adoeceu. Não é apenas o corpo do profissional que sangra  é o corpo moral do sistema de saúde. Enquanto os médicos continuarem sendo tratados como culpados pelo colapso que combatem diariamente, não haverá cura possível, nem para o sistema, nem para a humanidade que ele deveria servir.

Mariana

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