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Água que vem, terra que vai: por que a recuperação dos rios não pode esperar

O Rio Grande do Sul voltou a enfrentar chuvas devastadoras nesta semana. Em algumas regiões, os acumulados ultrapassaram 400 mm em poucos dias, o triplo da média histórica para o mês de junho, segundo dados da Defesa Civil Estadual. Mais de 6 mil pessoas tiveram que deixar suas casas, cerca de 98 municípios foram atingidos, e novamente vidas foram perdidas.

As cenas de alagamentos e destruição se repetem nas mesmas localidades que, há pouco mais de um ano, já haviam sido duramente castigadas. Rodovias estaduais inteiras foram interrompidas, isolando comunidades e dificultando o acesso a serviços básicos e ao transporte de suprimentos. Mais uma vez, estradas como a RSC-287 e trechos da BR-392 sofreram com quedas de barreiras, erosões e rompimento de pistas. A força da água escancarou, novamente, a fragilidade da infraestrutura viária e o quanto os rios, margens e taludes seguem desprotegidos.

No interior, o Rio Toropi, assim como o Rio Soturno, voltou a registrar níveis críticos. Ambos já vinham de uma situação de fragilidade extrema desde os eventos de 2024, com margens erodidas, sedimentos acumulados e mata ciliar severamente comprometida. No Soturno, como os dados da UFSM mostraram recentemente, 70% da vegetação ciliar foi destruída e 31% do curso natural do rio já havia sido alterado pelas chuvas anteriores. No Toropi, os registros de novas inundações desta semana apontam o agravamento de uma realidade que já era preocupante.

O problema não está apenas no excesso de chuva, mas também no solo que perdeu sua capacidade de absorção e retenção. Onde antes havia vegetação, hoje só resta terra exposta. As margens fragilizadas dos rios e arroios se transformaram em corredores livres para o escoamento acelerado da água, levando consigo lixo, resíduos sólidos, sedimentos e esgoto clandestino. O resultado é um impacto direto na qualidade da água e do solo. As águas de alagamento carregam o que encontram pelo caminho: dejetos humanos, restos de animais, produtos químicos e resíduos urbanos jogados de forma irregular.

Programas como o Desassorear RS, que já retirou mais de 40 mil metros cúbicos de sedimentos, são importantes como resposta emergencial. Mas o que vimos nesta semana deixa claro que desassorear sem recuperar as margens é uma medida paliativa. O ciclo de assoreamento, contaminação e novas inundações continuará enquanto não houver um investimento sério na recuperação das áreas de preservação permanente, no reflorestamento com espécies nativas e no controle efetivo do uso do solo.

A fragilidade dos nossos rios em condições normais já é crítica. Quando chove intensamente, a combinação “chuva + solo vulnerável + falta de saneamento” forma um ciclo quase genocida em pequenas e grandes cidades. E a conta é sempre social: quem paga pela higienização, saúde, infraestrutura danificada e perda de moradia? Geralmente, quem tem menos.

Por isso, a nova enchente é um grito de alerta: não podemos continuar repetindo o mesmo erro. É inaceitável que, depois de 15 meses, muitos rios ainda estejam em situação crítica. A recuperação das margens, a implantação de plantas nativas, o reflorestamento das matas ciliares, a contenção de encostas e a estruturação de APPs devem caminhar lado a lado com ações pontuais de desassoreamento.

A cada nova enxurrada, o que está em jogo não é só a estrutura das estradas ou o curso dos rios, mas a segurança hídrica, a saúde pública e a capacidade de resiliência das comunidades. A contaminação das águas e do solo aumenta o risco de doenças como leptospirose, hepatite A e infecções gastrointestinais. Além disso, os prejuízos econômicos com a reconstrução de rodovias, pontes, redes de abastecimento e infraestrutura urbana se acumulam.

É urgente que o Estado e os municípios deixem de atuar apenas de forma reativa. Precisamos de um plano integrado de recuperação de bacias hidrográficas, que contemple desde o mapeamento das áreas de risco até a execução de projetos de engenharia ambiental, reflorestamento, educação comunitária e fortalecimento das estruturas de fiscalização.

Sem isso, vamos continuar caminhando em círculos: cada nova chuva vira mais uma tragédia anunciada. Cada trecho de estrada rompido é um lembrete da nossa inércia. E cada metro de margem perdida aproxima Santa Maria, o Rio Grande do Sul e o Brasil de um colapso ambiental difícil de reverter.

A hora de agir é agora. Porque os rios não esperam. E a próxima chuva, infelizmente, já tem data marcada no ciclo natural.

Ana

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