Santa Maria, no coração do Rio Grande do Sul, abriga algo mais do que a passagem do tempo: uma paisagem urbana que testemunha um dos momentos mais efervescentes da arquitetura brasileira. Com dezenas de edifícios no estilo Art Déco distribuídos principalmente pela Avenida Rio Branco, a cidade preserva um conjunto arquitetônico de grande valor estético e histórico. Agora,esse acervo clama por reconhecimento enquanto ferramenta de desenvolvimento econômico, cultural e turístico.
O estilo Art Déco, marcado por elementos geométricos, frisos verticais e ornamentação moderna, surgiu em um período de transição no início do século XX. “Esse acervo faz parte da nossa história, da identidade de Santa Maria. Ele surgiu em um momento de pujança econômica e cultural, impulsionado pela ferrovia”, afirma a arquiteta e urbanista Lídia Rodrigues, presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (COMPHIC).
A professora Ana Paula Nogueira, doutora em Teoria e História da Arquitetura e docente da ULBRA Santa Maria, ressalta que o conjunto local expressa uma identidade própria. “Essas edificações expressam o desejo de progresso da elite comercial e técnica da época, além de apresentarem uma transição única entre o ecletismo e o modernismo.”
Segundo o COMPHIC, mais de uma centena de imóveis foram tombados no município em 2018, sendo cerca de 80% deles com traços Art Déco. Entre os destaques estão o Edifício Mauá, o Museu das Irmãs Franciscanas, além de diversos imóveis comerciais e residenciais que ainda aguardam restauro.



Desafios e possibilidades para reocupação
Apesar do valor histórico e estético, o conjunto enfrenta abandono e descaracterização. “Os maiores desafios práticos estão ligados à acessibilidade, ao uso de materiais antigos e à necessidade de mão-de-obra especializada”, explica a arquiteta Márcia Kümmel, mestre em Patrimônio Cultural pela UFSM. Ela, que atua há mais de 20 anos em Santa Maria, acredita que o restauro desses prédios pode revitalizar não apenas os edifícios, mas todo o entorno.
“Temos exemplos bem-sucedidos como o novo Sicredi, o Museu das Irmãs Franciscanas e a Casa de Cultura, que está em reforma. Todos mostram que é possível conciliar o histórico com o contemporâneo”, afirma Márcia. Para ela, incentivos mais expressivos do poder público e legislações que incentivem a manutenção são fundamentais. Hoje, o desconto de até 85% no IPTU oferecido aos proprietários é considerado insuficiente.
Educação patrimonial e turismo como estratégia
Na visão de Lídia, a valorização do patrimônio passa por maior engajamento social: “A divulgação é nossa maior carência. Precisamos fazer com que a comunidade conheça e se envolva”. A presidente do COMPHIC aponta que iniciativas como podcasts, visitas guiadas e a inserção do tema nas escolas são caminhos promissores.
Nesse sentido, Santa Maria tem dado passos importantes. A Secretaria Municipal de Turismo destaca que o conjunto Art Déco é parte dos planos de ativação do Distrito Criativo Centro-Gare. Em 2025, foi comemorado o centenário do estilo com exposições, oficinas e caminhadas pela cidade. “Temos um acervo de qualidade e quantidade que diferencia Santa Maria no cenário turístico nacional”, afirma a secretaria, que também menciona projetos como o “Mapeando Memórias” e as visitas promovidas pelo Coletivo Memória Ativa.
O projeto “Mapeando Memórias”, da Universidade Franciscana (UFN), identificou e sinalizou 33 edifícios com QR Codes, oferecendo informações sobre sua história e arquitetura. As visitas podem ser realizadas individualmente ou em grupo, promovendo educação patrimonial e turismo acessível.
O potencial como marca identitária
A professora Ana Paula Nogueira acredita que o Art Déco pode ser um catalisador da requalificação urbana. “Intervenções sensíveis, como anexos contemporâneos dialogando com o histórico, poderiam revitalizar a área sem descaracterizá-la.” Para ela, a integração entre poder público, leis de preservação e a economia criativa pode fazer da Avenida Rio Branco um modelo nacional.
Márcia Kümmel reforça: “As novas gerações precisam conhecer e valorizar o que está ao seu redor. Eventos interativos, tecnologia, turismo e economia criativa são caminhos para engajamento.” A ideia é transformar o centro histórico em um ecossistema vivo, que conecte passado e futuro com protagonismo local.
Santa Maria tem potencial para se tornar referência nacional em turismo patrimonial, e essa visão já chegou até fora do país. “Recebemos a visita da presidente da Associação do Art Déco da Argentina, interessada em firmar parcerias com a cidade. Isso mostra o reconhecimento internacional do nosso acervo”, compartilha Lídia.
Por trás dos frisos geométricos e das fachadas simétricas, pulsa a história de uma cidade que pode, sim, se reinventar sem apagar suas marcas. Com vontade política, incentivo à preservação e envolvimento da sociedade, o Art Déco de Santa Maria pode deixar de ser apenas um tesouro oculto para se tornar uma vitrine de identidade, cultura e futuro.


