Categories: Colunas

Direito, divórcio e a arte de não matar pombos com canhões

“E se não existisse o Direito?”
Essa pergunta costuma aparecer nos primeiros dias de aula da faculdade de direito. É quase um rito de passagem. Uma provocação simples, mas que se instala de forma quase permanente na cabeça de quem escolheu seguir esse caminho.

A resposta mais imediata dos calouros é previsível: “sem o direito, viveríamos no caos”. Mas não demora muito para descobrirmos que o buraco é mais embaixo — e que o próprio conceito de “Direito” está longe de se esgotar em normas, códigos ou constituições. O Direito, afinal, é (ou deveria ser) um instrumento a serviço da justiça. E justiça, por sua vez, é algo que nem sempre cabe num artigo ou numa sentença.

A verdade é que a maioria de nós só começa a entender o que é Direito de verdade quando sai da sala de aula e encontra a vida real. Às vezes, é no estágio, de forma não remunerada, quando uma senhora de 70 anos chega até você, advogada em formação, e pede — com humildade e desespero — ajuda para resolver um problema pessoal, íntimo, urgente. É nesse momento que o conceito ganha carne, voz, cheiro, urgência.

Mas hoje quero te convidar a pensar sobre outro cenário. Um casal. Dez, talvez quinze anos juntos. Dois filhos, um cachorro e uma casa financiada. E, agora, um silêncio ensurdecedor no lugar do amor. Eles querem se separar. Ou melhor, sabem que não dá mais. Mas não sabem como. Procuram um advogado — ou melhor, um campo de batalha. Querem que alguém lhes diga quem está certo, quem sairá ganhando, quem vai “ficar com tudo”. Muitas vezes os filhos acabam sendo uma moeda de troca injusta e a confusão se instala em todo o ecossistema familiar.

Será que o Direito precisa mesmo ser esse tribunal de guerra?

Nesse contexto, gosto de lembrar da célebre frase: “Não é preciso um canhão para matar pombos.” E me pergunto: quantos casamentos destruídos terminam em batalhas judiciais desnecessárias, onde se gastam anos, dinheiro, energia emocional e até a dignidade — quando tudo poderia ter começado por uma boa conversa? Ou melhor: por uma boa mediação.

A mediação é esse caminho possível — e muitas vezes esquecido — entre o fim do afeto e o início da ação judicial. Um espaço seguro, acolhedor, onde duas pessoas podem reconstruir pontes antes de desabar em tribunais. Onde o advogado deixa de ser um gladiador e passa a ser facilitador. Um tradutor de angústias.

Parece idealista? Talvez. Mas o Direito precisa de idealistas, também. Porque, no fundo, o que é direito senão aquilo que nos parece certo, ético, moral?

Não raro, vejo colegas empolgados citando Kant, Rousseau, Bobbio… e se confundindo entre eles, misturando Hobbes no meio de argumentos. Tudo isso até que a sentença chega e a realidade cobra seu preço. Nomes e conceitos se apagam, mas os desafios da vida real não esperam. Aí é na prática que a gente descobre que Direito não é só o que está no artigo 1.577 do Código Civil. É o que a gente faz com ele.

É por isso que acredito: o maior desafio de quem opera o Direito não é decorar leis — mas sim discernir quando aplicá-las, e como. Às vezes, é mais justo propor uma escuta do que uma petição inicial. E mais corajoso chamar para conversar do que pedir tutela antecipada.

É claro, cada caso é um caso e as vezes o tribunal é sim a única saída.
E, Sim, eu sei: as leis existem. Elas são necessárias. Assim como a morte é. E aqui cito Saramago, em “As intermitências da morte”: “As pessoas maldiziam a morte, mas, quando ela cessou, ficaram completamente perdidas.”
O Direito, como a morte, nem sempre é belo ou justo. Mas é essencial.

Nem todo divórcio precisa ser um campo minado. Nem toda disputa precisa se transformar em litígio. E talvez essa seja uma das lições mais importantes da vida prática do Direito: saber quando se está matando pombos com canhões. Saber quando a batalha jurídica é necessária — e quando ela é apenas ruído, vaidade, desperdício.

O que é Direito, então?

É reconhecer que, às vezes, justiça é silêncio, é acordo, é mediação.
É saber que algumas dores precisam ser ouvidas — e não apenas protocoladas.
É entender que o Direito não se limita às leis. Que o Direito, de verdade, mora nas escolhas que fazemos. E, sobretudo, mora na ética que nos move.

Talvez, no fim das contas, o Direito seja isso: a arte de saber a medida.
A medida do que é certo. A medida do que vale a pena.
A medida entre o litígio e a paz.

Redação enFoco

Recent Posts

Palmeira das Missões entrega 120 cestas do Programa de Aquisição de Alimentos

Na quinta-feira (21), a Administração Municipal de Palmeira das Missões realizou a entrega de 120…

16 horas ago

Santa Rosa recebe lançamento da 45ª Fiesta Nacional del Inmigrante

Na manhã desta segunda-feira (25), no Parque de Exposições Alfredo Leandro Carlson, em Santa Rosa,…

16 horas ago

Não é só menopausa: Quando o corpo fala outra coisa

Fadiga constante, lapsos de memória, alterações de humor, formigamentos e insônia. Esses são sintomas que…

17 horas ago

Programa Avançar Mais na Saúde investe R$ 78 milhões em hospitais do Centro-Oeste do RS

Desde o início, o programa Avançar Mais na Saúde já destinou R$ 78 milhões para…

18 horas ago

Estudantes de Santa Maria são premiadas em festival de cinema pelo documentário “Quando a Gente Menina Cresce”

Foto: Guilherme Brum Seis alunas da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Sérgio Lopes, de…

18 horas ago

Chuva forte no RS deixa mais de 700 pessoas desabrigadas

As fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul neste fim de semana deixaram…

18 horas ago