Há prédios que falam. Não pelas janelas ou pelas paredes, mas pela memória viva que carregam. A Casa de Cultura de Santa Maria, situada na Praça Saldanha Marinho, no coração da cidade, é um desses lugares onde o tempo pulsa com a força da arte.
Construído na década de 1940, o edifício abrigou o Fórum da Comarca até 1992. Já no ano seguinte, em 1993, a posse do prédio foi repassada ao município com a condição de que fosse destinado à cultura, sob pena de retorno ao patrimônio do doador caso tivesse outra finalidade. Assim nasceu a Casa de Cultura.
Gilda May Cardoso Santos, filha de Edmundo Cardoso, relembra com carinho os tempos em que o prédio ainda sediou o fórum:
“Meu pai ficou mais de 40 anos trabalhando lá. Lembro perfeitamente da estrutura. Os corredores, as salas, os funcionários. Tinha uma telefonista, a sala da chefia do fórum e uma cozinha pequena onde se faziam cafezinhos. Em cima, eram os cartórios. Logo após, o prédio deu espaço à cultura.”
Em 2011, um blog da Associação dos Amigos da Casa de Cultura narrava esse processo de conquista do espaço com entusiasmo e sensibilidade, mesclando relatos históricos com a esperança de quem acredita na cultura como ferramenta de transformação social.
O texto, quase uma crônica poética, descrevia, sob o título “A história que se tornou realidade”, os primeiros passos para restaurar o espaço, com apoio técnico, financiamento público e, principalmente, escuta ativa da comunidade santamariense:
“(…) A Casa de Cultura de Santa Maria existe graças à iniciativa de um grupo que ousou sonhá-la e passou a materializar sua existência a partir do momento em que o prédio do antigo fórum de Santa Maria ficou vago (…)”, escreveu o autor do blog.
Hoje, esse blog é como uma cápsula do tempo perdida nos arquivos da internet, mas carrega uma mensagem atemporal: cultura não se faz só com recursos, se faz com gente. Com a comunidade que acredita, propõe, participa e ocupa.
Mais do que um edifício, a Casa de Cultura é um patrimônio vivo. Seu estilo art déco, visível na fachada e nos detalhes internos, carrega um valor que vai além da estética: é testemunho de uma Santa Maria modernista, que projetava o futuro enquanto construía uma identidade coletiva.
A Casa não era apenas um espaço físico. Era um corpo pulsante de arte popular. Oficinas, aulas, feiras, saraus, exposições, ensaios, encontros e apresentações aconteciam ali com frequência, formando um ecossistema criativo em constante movimento. Ali coexistiam coletivos e instituições como a Escola Municipal de Artes Eduardo Trevisan (EMAET), a Casa do Poeta, o Clube de Xadrez, a TV OVO e o Santa Maria Vídeo e Cinema.
Para a EMAET, os 18 anos vividos no local foram muito mais do que uma ocupação institucional. “A Casa de Cultura foi, para nós, um lar onde a arte podia respirar livremente. Um lugar onde os muros não limitavam, mas acolhiam. Onde cada canto parecia pulsar junto com os nossos sonhos”, relembra Elionice, diretora da escola.
A escola, oferecia cursos para todas as idades, do infantil à terceira idade. “Foi um tempo de grande beleza, em que os alunos não apenas aprendiam arte, mas viviam a arte com intensidade, entrega e encantamento”, conta Elionice. “A convivência com outros artistas foi fundamental. A troca com o outro era enriquecedora. Um ajudava o outro. Isso fortaleceu o sentimento de pertencimento à comunidade artística. Era como viver a cidade com olhos de artista, transformar o cotidiano em cena.”
Essa rede de trocas também envolvia funcionários, visitantes e demais instituições. Em 2005, a TV OVO passou a ocupar o local, onde permaneceu até 2012.
“Foi uma experiência muito rica. Sempre havia companheirismo, seja durante a programação, nas participações conjuntas ou no simples fato de estar ali. Era uma oportunidade constante de interagir com outros profissionais, conhecer projetos, criar amizades. Isso marcou aquele período”, relembra Denize Copetti, integrante da equipe da TV OVO.
Para Therezinha de Jesus, coordenadora da Casa de Memória Edmundo Cardoso e viúva de Edmundo Cardoso, a Casa de Cultura era um verdadeiro caldeirão cultural. “Era um lugar efervescente. Tinha vida em cada canto.”
Com o tempo, a falta de manutenção tornou-se visível. Infiltrações, problemas elétricos e o desgaste estrutural comprometeram o prédio. Em 2009, foi tombado como Patrimônio Histórico e Cultural do Município. Em 2015, a Defesa Civil interditou o edifício e, com ele, encerraram-se muitas histórias.
A professora aposentada da UFSM, Clara Marli Scherer, relembra o fim desse ciclo: “Quando o espaço foi fechado, em 2015, queríamos entrar para retirar alguns materiais. Conseguimos resgatar alguns documentos e processos, mas todo o mobiliário que permaneceu lá simplesmente desapareceu. Até hoje, ninguém sabe onde foi parar.”
Para a EMAET, foi um dos momentos mais difíceis: “A Casa era o nosso lugar, onde a arte acontecia com liberdade e afeto. Quando perdemos esse espaço, sentimos como se tivessem arrancado um pedaço da nossa história.”
Na época, a Prefeitura estimou R$ 4 milhões para a revitalização. Mas, sem cronograma definido, a frustração tomou conta da comunidade artística. O prédio ficou fechado por anos, agravando sua deterioração.
“Ao assumir a gestão da Secretaria de Cultura, em 2020, encontramos o prédio já interditado e em condições bastante precárias. Intervenções paliativas não eram mais suficientes. Era necessário buscar uma solução definitiva”, explicou a secretária de Cultura, Rose Carneiro.
Após quase uma década de portas fechadas, a Casa de Cultura entrou, finalmente, em processo de revitalização. O projeto teve início ainda em 2022, na gestão do então prefeito Jorge Pozzobom (PSDB). A obra está sendo executada pela empresa Arquium Construções e Restauro Ltda, referência no estado em preservação de patrimônio histórico, com previsão de entrega para 2025.
Segundo a secretária Rose, a restauração foi viabilizada por meio de articulação entre a Secretaria de Cultura e a Secretaria de Elaboração de Projetos e Captação de Recursos. O Sindicato da Construção Civil (Sinduscon) doou ao município os projetos técnicos necessários para a obra, que hoje é acompanhada por engenheiros e arquitetos da prefeitura.
Atualmente, os tapumes em torno do prédio já não representam abandono, mas esperança. Esperança de que, em breve, a cidade volte a se reconhecer naquele espaço.“O mais importante agora é criar uma programação participativa, onde a comunidade possa propor e liderar atividades. A ideia é que a Casa de Cultura seja um espaço vibrante, democrático, onde as pessoas se encontrem, se expressem e se sintam parte”, reforça Rose.
A EMAET, assim como outros coletivos culturais da cidade, aguarda com carinho esse novo ciclo: “Queremos que a Casa seja viva, acessível, gratuita e múltipla. Que acolha todas as manifestações artísticas: música, teatro, dança, literatura, cinema, artes visuais. Que seja novamente um lar para a arte”, deseja Elionice.
Denize, da TV OVO, completa: “Esperamos que a Casa de Cultura volte a ser um espaço de encontros, trocas, convivência e inspiração. Um lugar onde a cidade se veja refletida em cada expressão artística.”
Revitalizar a Casa de Cultura é mais do que restaurar um prédio: é reacender uma chama. É reocupar a memória com vida, fazer do passado um alicerce para o futuro e lembrar que a cultura não desaparece, ela resiste, persiste e renasce, sempre que alguém ousa sonhar junto. Porque, no fim das contas, a alma de uma cidade pulsa onde sua arte respira.
Por: Samara Debiasi e Anna Clara Tesche
Imagens: Casa de Memória Edmundo Cardoso, Prefeitura de Santa Maria
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