Na última sexta-feira, o Rio Grande do Sul registrou seis feminicídios em um único dia. Seis mulheres assassinadas, brutalmente, vítimas de uma violência que é cotidiana, estrutural e atravessa todos os níveis da sociedade. Esses crimes não são exceções, tampouco desvios de comportamento. São manifestações de uma lógica de dominação sustentada por estruturas de poder profundamente desiguais entre homens e mulheres.
A teoria feminista nos ensina que o feminicídio não começa com o ato letal. Ele é o desfecho extremo de um percurso marcado por violências múltiplas — físicas, psicológicas, sexuais, morais e patrimoniais — que as mulheres enfrentam em suas casas, no trabalho, nas ruas e até dentro de instituições públicas.
Antes mesmo que se chegue ao ponto de haver feminicídio, há uma estrutura de poder internalizada, que conduz a violência simbólica, elemento central nessa engrenagem: é ela que naturaliza e legitima a desigualdade, de forma quase que invisível aos nossos olhos. E isso, se expressa em piadas machistas, na objetificação da mulher, nos estereótipos, até que, por fim, nos atos de violência e infelizmente na culpabilização da vítima Essa violência simbólica, pavimenta o caminho para a violência física. Ela funciona como um mecanismo de manutenção das estruturas de poder patriarcais, fazendo com que muitas mulheres sequer reconheçam que estão em situação de violência — e quando reconhecem, muitas vezes não encontram respaldo nas instituições do Estado.
Se não olharmos para a violência simbólica que nos permeia, nas entranhas das nossas relações diárias e buscar combate-la, não seremos jamais capazes de combater a violência física e os feminicídios que tanto nos assustam.
O feminicídio, portanto, não é só um crime contra uma pessoa: é um crime contra o direito das mulheres de viverem com dignidade e liberdade. É a consequência de uma cultura de controle e submissão, onde o agressor sente-se legitimado a exercer poder sobre a vida da mulher, muitas vezes com a conivência do silêncio social.
Quando analisamos esse cenário sob uma lente interseccional, vemos que ele é ainda mais cruel com mulheres negras, indígenas, periféricas, com deficiência ou em situação de vulnerabilidade social. Essas mulheres, historicamente marginalizadas, têm ainda menos acesso a redes de proteção e justiça. É por isso que políticas públicas precisam ser sensíveis a essas múltiplas camadas de opressão. Não há solução universal para um problema que se manifesta de formas tão diversas.
O enfrentamento ao feminicídio passa, necessariamente, por medidas estruturais e urgentes:
Fortalecer a rede de proteção e acolhimento, com delegacias especializadas, casas-abrigo, assistência jurídica e atendimento psicossocial às mulheres em risco. Educar para a equidade de gênero, desde os primeiros anos escolares, desconstruindo papéis sociais opressivos e promovendo uma cultura de respeito e liberdade.
Capacitar as instituições públicas, especialmente as ligadas à segurança e justiça, para atuar com sensibilidade de gênero e acolher de fato as denúncias.
Responsabilizar efetivamente os agressores, com aplicação rigorosa da Lei Maria da Penha e monitoramento de medidas protetivas.
Promover campanhas contínuas de conscientização, que enfrentem a cultura do machismo e desnaturalizem a violência simbólica.
É urgente que o poder público, em todas as esferas, assuma sua responsabilidade diante dessa tragédia anunciada. Não podemos continuar naturalizando a morte de mulheres como se fosse inevitável. Não é. É fruto de escolhas — ou da falta delas — que fazemos enquanto sociedade.
Seis feminicídios em um único dia é um grito que não pode ser ignorado. Que a dor dessas famílias nos convoque à ação. Porque cada mulher assassinada é uma ferida aberta na nossa democracia.
Lorenzo Pichinin