É curioso como, no papel, tudo parece justo. A guarda é compartilhada, o tempo de convivência está dividido, os pais têm responsabilidades conjuntas. A lei, aliás, é clara: o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil, com as alterações da Lei nº 13.058/2014, determinam que a guarda compartilhada deve ser a regra, mesmo quando não há consenso entre os genitores. Parece o caminho mais equilibrado. Mas, na prática, há algo que o papel não revela: o peso desproporcional que continua recaindo sobre os ombros das mães.
Não é incomum encontrar sentenças e acordos que estabelecem a guarda compartilhada com todo rigor técnico, mas que, na vivência diária, se traduzem em uma divisão desigual das tarefas. É a mãe quem acompanha nas consultas médicas, quem comparece às reuniões escolares, quem ajusta a rotina para dar conta dos horários da criança. É ela quem sente a culpa de não conseguir estar em todos os lugares, quem ouve “você dá conta porque é mãe” como se isso fosse uma solução mágica para o cansaço, a sobrecarga emocional e, muitas vezes, a ausência de rede de apoio.
Esse cenário levanta uma pergunta que precisa ser feita com coragem: a guarda é realmente compartilhada ou apenas formalmente compartilhada? O que temos visto no dia a dia dos fóruns e nas conversas silenciosas dos corredores é que muitas mulheres continuam sendo as únicas verdadeiras responsáveis pela rotina dos filhos, mesmo diante de decisões que supostamente repartem os deveres entre pai e mãe. A guarda compartilhada, que deveria representar uma evolução na forma de entender a parentalidade, em muitos casos se transforma numa ficção jurídica — e, o que é pior, numa armadilha.
É importante lembrar que a guarda compartilhada não significa divisão exata de tempo entre os genitores, mas sim uma divisão de responsabilidades, de decisões e de presença efetiva na vida da criança. Conforme o artigo 1.583, §1º do Código Civil, o que se busca com esse modelo é o exercício conjunto da autoridade parental, sempre visando ao melhor interesse do filho. No entanto, se apenas um dos genitores se envolve nas decisões escolares, médicas, alimentares e emocionais, ainda que o outro contribua com pensão ou esteja presente em momentos pontuais, é justo chamar isso de guarda compartilhada?
Como bem observa a doutrinadora Maria Berenice Dias, “a guarda compartilhada pressupõe convivência equilibrada e cooperação real entre os pais, o que nem sempre se concretiza na prática, tornando a figura da guarda mais simbólica do que funcional” (Manual de Direito das Famílias, 2021). Ainda segundo a autora, a guarda compartilhada não pode ser utilizada como escudo para mascarar a omissão de um dos genitores.
Esse debate ganha ainda mais relevância quando introduzimos o conceito de trabalho invisível, ou carga mental materna — tema amplamente discutido por autoras como Silvia Pimentel e Helena Hirata. Trata-se do esforço constante e silencioso que as mães realizam para organizar, prever, cuidar, lembrar e garantir o bem-estar dos filhos. Um trabalho que não é remunerado, raramente reconhecido e que, na prática, representa um acúmulo de funções físicas e emocionais.
Nos últimos anos, o Judiciário tem começado, ainda que timidamente, a reconhecer os impactos desse trabalho invisível nas relações familiares e nos cálculos da pensão alimentícia. Em julgado recente do TJSP, a corte majorou os alimentos em favor da genitora que, mesmo em regime de guarda compartilhada, comprovou ser a única responsável pela rotina da criança. O relator destacou que “a divisão da guarda não pode servir de justificativa para reduzir ou omitir o dever de sustento quando se verifica que apenas um dos genitores assume, de fato, as responsabilidades diárias”.
Esse entendimento também tem respaldo em decisões do STJ, onde já se afirmou que a pensão deve levar em conta não apenas a capacidade contributiva do alimentante, mas também o tempo e a dedicação exigidos do guardião. O reconhecimento jurídico do trabalho invisível representa um passo importante na tentativa de equilibrar, com justiça, as obrigações parentais.
O que se pretende aqui não é deslegitimar a guarda compartilhada — ao contrário. Ela é, sim, um avanço necessário e uma ferramenta poderosa para garantir a coparentalidade responsável. O que se propõe é uma leitura mais realista e humanizada, que leve em consideração o que acontece fora dos autos: a sobrecarga silenciosa das mães, muitas vezes travestida de equilíbrio.
Aos pais, fica o convite à reflexão: você está realmente dividindo as responsabilidades ou apenas cumprindo um cronograma mínimo de presença? Está emocionalmente envolvido ou apenas “comparecendo” nos dias estipulados? Ser pai compartilhado exige mais do que presença física — exige envolvimento real, disponibilidade, escuta e compromisso.
Às mães, fica a validação do cansaço. Nomear a sobrecarga é legítimo. Exigir coerência entre o que se determina no papel e o que se vive na prática é justo. O Direito das Famílias precisa caminhar para além da letra fria da lei e enxergar a vida como ela é: complexa, desigual e, muitas vezes, cansativa para quem carrega o peso que ninguém vê.
Porque, no fim, a pergunta que realmente importa não é quem tem a guarda no papel, mas quem tem a responsabilidade no dia a dia. E essa resposta não pode continuar sendo ignorada.
Eizzi Benites Melgarejo, advogada especialista em família e sucessões – sócia do escritório Urach, Jensen, Abaide, Melgarejo e Brum
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