A digitalização da vida humana transformou profundamente a forma como vivemos, nos relacionamos, trabalhamos, armazenamos informações e, por consequência inevitável, também a maneira como morremos — ou, mais precisamente, o que deixamos após a morte. Em um tempo em que boa parte da nossa existência se dá no ambiente virtual, surge uma pergunta incômoda e cada vez mais presente nos tribunais, nos escritórios e nas conversas de quem planeja o futuro: quem fica com os dados, senhas, contas digitais e perfis em redes sociais após o falecimento de uma pessoa?
Essa questão, que até poucos anos atrás poderia parecer exótica ou futurista, hoje já integra a pauta do Direito Sucessório, exigindo uma releitura dos conceitos clássicos de herança, patrimônio e vontade post mortem. A chamada “herança digital” envolve a transmissão (ou não) de conteúdos digitais, como contas em redes sociais, e-mails, arquivos armazenados em nuvem, bibliotecas digitais, moedas virtuais, canais monetizados, blogs, domínios de internet, entre outros bens intangíveis, muitos dos quais com valor econômico real e, outros, com valor afetivo imensurável.
O Código Civil brasileiro de 2002, apesar de relativamente recente, foi concebido sob uma lógica predominantemente analógica. Em seus dispositivos sobre sucessão, não há qualquer menção ou previsão quanto à destinação de bens digitais. A ausência de regulamentação específica tem gerado lacunas interpretativas e decisões judiciais díspares. Ainda não há no Brasil uma lei federal que regulamente a herança digital de forma expressa, embora existam projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com esse objetivo, como o PL 4.099/2012 e suas variantes, que permanecem paralisados ou com pouca adesão legislativa.
Enquanto isso, o Poder Judiciário tem sido chamado a decidir, caso a caso, sobre a possibilidade de familiares acessarem contas de e-mail, perfis em redes sociais e arquivos digitais de falecidos. Em algumas decisões, tem-se admitido o fornecimento de dados mediante autorização judicial, sobretudo quando há indicativos de relevância patrimonial ou necessidade de acesso para organização da sucessão. Em outras ocasiões, invoca-se o direito à intimidade do falecido como forma de limitar ou impedir o acesso de terceiros, mesmo herdeiros legítimos. Essa tensão entre a proteção da personalidade após a morte e o direito sucessório tradicional desafia o ordenamento jurídico.
Não se trata apenas de saber se um filho pode acessar o Google Drive do pai falecido, mas sim de reconhecer que, em tempos digitais, os bens que compõem o acervo sucessório não se limitam aos tradicionais imóveis, veículos ou aplicações financeiras. Um canal do YouTube com monetização ativa, uma carteira de criptomoedas, um blog com grande alcance e até mesmo uma conta no Instagram com milhares de seguidores podem representar valores significativos — seja em termos econômicos, seja como extensão da identidade e da memória do falecido.
O maior problema prático, contudo, está na ausência de mecanismos jurídicos e técnicos que garantam o acesso dos herdeiros a esses bens. Ainda que haja direito à sucessão, a realidade é que muitos arquivos, contas e informações estão protegidos por senhas pessoais, autenticação em dois fatores ou vinculados exclusivamente a dispositivos eletrônicos. Ou seja, herdar a titularidade legal não significa, na prática, conseguir acessar o conteúdo. É nesse ponto que se revela a importância do planejamento sucessório digital.
Cada vez mais advogados especializados em Direito de Família têm recomendado que seus clientes incluam em testamentos ou documentos complementares instruções específicas sobre seus bens digitais. É possível nomear um “testamenteiro digital”, deixar senhas criptografadas registradas em cartório, manifestar vontade quanto à continuidade ou exclusão de perfis em redes sociais e destinar valores vinculados a plataformas online. Essa prática ainda é incipiente no Brasil, mas tem ganhado força diante da crescente conscientização sobre a importância da herança digital.
Do ponto de vista crítico, é inegável que o ordenamento jurídico brasileiro precisa evoluir com urgência. A ausência de um marco legal que regule de forma clara e objetiva os direitos sucessórios digitais gera insegurança jurídica, incentiva litígios desnecessários e impede a efetiva proteção da vontade do falecido. É preciso garantir um equilíbrio entre o direito à privacidade post mortem e o direito dos herdeiros legítimos ao patrimônio digital, respeitando a autonomia da vontade e a função social da herança.
Além disso, é essencial que plataformas digitais desenvolvam políticas claras e transparentes quanto ao destino de contas de usuários falecidos, oferecendo mecanismos padronizados para sua exclusão, memorialização ou transferência autorizada. Algumas empresas já começaram esse movimento, como o Facebook e o Google, que permitem a indicação de contatos de confiança ou ativação de contas inativas, mas essas funcionalidades ainda são pouco divulgadas e quase nunca utilizadas.
Por fim, cabe ao profissional do Direito, especialmente aquele que atua com famílias, ampliar o olhar sobre o conceito de patrimônio. A sucessão do século XXI não se limita a bens tangíveis. Ela inclui memórias armazenadas em nuvem, afetos em arquivos de mídia, investimentos digitais e até identidades virtuais. Reconhecer essa realidade é o primeiro passo para assegurar uma sucessão mais justa, completa e conectada com os novos tempos.
Planejar a herança digital não é apenas uma necessidade jurídica. É também um ato de cuidado com aqueles que ficam — e uma forma moderna de preservar o legado de quem parte.