(O que acontece com o corpo depois que partimos – e por que isso importa para quem ainda está aqui.)
A recente morte do Papa Francisco, um líder espiritual que inspirou milhões com suas palavras sobre humanidade, justiça e cuidado com a criação, reacendeu em mim uma busca silenciosa — e persistente — por respostas espirituais. Em meio ao turbilhão de notícias e homenagens, me vi refletindo sobre a nossa finitude. Somos todos passageiros neste plano, seres terrenos com datas indefinidas para partir. A vida é finita. O espírito, talvez eterno. Mas e o corpo? E a matéria que deixamos para trás?
Em meio a esses questionamentos, comecei a olhar para algo que sempre me intrigou: os cemitérios. Espaços silenciosos, quase intocáveis, onde a matéria é depositada com cerimônias, memórias e flores. Mas o que poucos falam é sobre o rastro ambiental deixado por esses espaços de despedida. Como a terra responde a esse acúmulo de corpos e resíduos? O que há por trás do luto, que não conseguimos ver? O que estamos fazendo com o solo, com a água e com o ar quando decidimos como sepultar nossos mortos?
Os cemitérios, muitas vezes vistos apenas como espaços de silêncio e memória, são também ambientes de grande complexidade ambiental. O luto, ao ganhar forma física através de túmulos, jazigos e rituais, imprime marcas invisíveis no território. A decomposição dos corpos gera um subproduto perigoso: o necrochorume — um líquido espesso, escuro, de odor fétido, formado por substâncias orgânicas e inorgânicas, microrganismos patogênicos e metais pesados.
Esse fluido tóxico, quando não contido adequadamente, infiltra-se no solo e atinge as águas subterrâneas. Em solos mais permeáveis ou mal manejados, esse processo pode ocorrer de forma rápida, silenciosa e irreversível. Estima-se que um único corpo humano possa gerar até 30 litros de necrochorume durante seu processo de decomposição. Se multiplicarmos isso pelas centenas ou milhares de sepultamentos em um único cemitério, temos uma equação alarmante para os lençóis freáticos urbanos.
Pesquisas locais realizadas por Ana Carla Rauber (UFSM) revelam a vulnerabilidade dos aquíferos em Santa Maria, principalmente em áreas com forte presença de postos de combustíveis e cemitérios — fontes potenciais de contaminação. Em sua dissertação, Rauber apontou que cerca de 30% dos poços analisados apresentavam risco médio a alto de poluição, muitos deles situados próximos a cemitérios. É uma realidade silenciosa, mas urgente, que precisa ser considerada nas políticas públicas de planejamento urbano e ambiental.
Um exemplo concreto desse alerta é o Cemitério Municipal Central de Osório, no litoral norte gaúcho. Construído ainda no século XIX, hoje está totalmente inserido na malha urbana, cercado por residências e comércios. Sem infraestrutura de impermeabilização ou controle ambiental, o local já demonstra sinais de saturação física. Estudos apontam alterações químicas na água dos poços da região, com elevação nos níveis de nitrato, fósforo e outros compostos, sugerindo contaminação causada pelos processos de decomposição.
O solo arenoso da planície costeira — comum na região — tem baixa capacidade de retenção, o que favorece a rápida infiltração do necrochorume até os aquíferos rasos. A ausência de planejamento geoambiental e a falta de fiscalização sanitária consolidam um cenário propício à degradação lenta e invisível. Osório é reflexo de um problema comum em muitas cidades brasileiras, onde cemitérios antigos operam sem atender às exigências ambientais contemporâneas, colocando em risco a saúde pública e os recursos hídricos.
Salete Retamoso Palma em sua pesquisa também reforçou esse debate ao destacar a falta de educação ambiental voltada aos cemitérios. Segundo ela, ainda tratamos a morte como um tabu ambiental. No entanto, os cemitérios não são apenas espaços de memória — são também locais de impactos reais, capazes de comprometer o solo, contaminar a água e facilitar a propagação de doenças quando seus resíduos não são devidamente gerenciados.
Além do necrochorume, há ainda outras ameaças silenciosas: a presença de metais pesados oriundos de próteses e objetos enterrados com os corpos, o uso de produtos químicos no embalsamamento e até o concreto e mármore que tornam os túmulos mais impermeáveis, contribuindo para o escoamento superficial e erosão do solo. E, ainda assim, poucos municípios brasileiros exigem Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ou Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) para a construção ou ampliação de cemitérios. É como se a morte estivesse isenta das exigências ambientais da vida.
No Brasil, dados da Agência Nacional de Águas (ANA) e de pesquisas da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) indicam que mais de 60% dos cemitérios não possuem sistemas de impermeabilização adequados. Além disso, apenas 15% possuem monitoramento da qualidade do solo e das águas subterrâneas. Ou seja: vivemos rodeados por passivos ambientais que são invisíveis até se tornarem um problema irreversível.
Mas há alternativas possíveis — e mais responsáveis. Cemitérios verticais, já implantados em algumas capitais brasileiras, ocupam menos espaço e, quando bem projetados, conseguem conter o necrochorume com sistemas de drenagem e ventilação. Crematórios modernos, com filtros para controle de gases, são uma realidade em países com legislações ambientais mais rigorosas. E em lugares como Nova York, a compostagem humana — também chamada de redução orgânica natural — transforma corpos em adubo em cerca de 60 dias, permitindo um retorno à terra com mínimo impacto ambiental.
Ainda assim, essas soluções enfrentam forte resistência cultural, política e até religiosa. Falar sobre a morte já é difícil. Falar sobre o impacto ambiental da morte, é inaceitável. Toca em medos ancestrais, crenças pessoais, ritos familiares. Mas é justamente nesse terreno sensível que precisamos fincar as perguntas certas: como estamos nos despedindo do mundo? O que deixamos para trás, além das memórias? A maneira como nos despedimos do mundo precisa estar alinhada com os valores que defendemos em vida. E isso inclui o cuidado com o solo, com a água e com o planeta que continuamos a impactar — mesmo depois de partir.
Se vivemos um tempo em que sustentabilidade é pauta urgente — no consumo, na mobilidade, na alimentação — por que não ampliá-la também ao campo da morte? O cuidado com o corpo físico após a vida deve ser uma extensão do cuidado com a Terra. Pensar em rituais que respeitem tanto a espiritualidade quanto o meio ambiente é, ao mesmo tempo, um ato de humanidade e de responsabilidade coletiva.
A morte do Papa Francisco, que nos deixa um legado de espiritualidade voltado à justiça social e à ecologia integral, me fez refletir sobre como honrar a vida também nos seus finais. Que nossas escolhas, mesmo nas despedidas, possam ser um gesto de amor pela Terra — esta casa que nos acolhe no início e, inevitavelmente, no fim.








