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O Mundo Invertido das Palavras Vazias

Há um certo absurdo que paira no ar, um eco vindo de terras distantes que, ao cruzar o oceano, perdeu completamente o sentido. Chega como um ruído, uma dissonância cognitiva que nos faz esfregar os olhos e conferir o calendário: não, não estamos em 1964. Estamos em pleno 2024, e a democracia brasileira, suada e conquistada a duras penas, respira, debate, erra, acerta e, acima de tudo, funciona.

É um verdadeiro mundo paralelo, esse onde alguns tentam pintar o Brasil com as cores sombrias de uma ditadura. A comparação não é apenas errada, é ofensiva. Ofensiva à memória daqueles que sofreram com a truculência de um Estado que realmente calava, perseguia e torturava. Hoje, o que temos é o contrário: o pleno exercício da Justiça. Processos, instâncias, recursos, contraditório, ampla defesa. A lei, com todos os seus ritos e críticas, mas sendo seguida à risca. Chamar isso de perseguição política é como chamar o manual de instruções de um aparelho de censura. É não querer enxergar a diferença entre um tribunal e um porão.

A hipocrisia atinge seu ápice máximo quando o sermão sobre “direitos humanos” e “democracia” vem justamente de um governante que, não faz muito, incentivava tropas a atirar em imigrantes pela perna, que separava crianças de seus pais em fronteiras, colocando-as em jaulas e que desdenha até hoje publicamente de qualquer instituição que não se curvasse à sua vontade imediata. É o mundo invertido: o acusador projeta no espelho a sua própria imagem distorcida e aponta o dedo para o reflexo, gritando contra o que ele mesmo é.

Vivemos uma era perigosa das distorções. Uma época em que palavras perdem seu significado original e são usurpadas para servir a narrativas convenientes. “Liberdade” vira slogan para negar o direito do outro, “Justiça” vira sinônimo de impunidade para os aliados e punição para os desafetos, e “Ditadura” vira um chavão para qualquer ação legal que desagrade.

A reflexão que fica é sobre a importância de defender a verdade não apenas dos fatos, mas dos conceitos. Não podemos permitir que a memória dos horrores passados seja banalizada por uma retórica oportunista e sem fundamento. A democracia brasileira é barulhenta, é caótica, é passional, e sim, suas instituições são imperfeitas. Mas é justamente nesse barulho todo da imprensa livre que critica, no Congresso plural e até na Justiça cega, que residem sua força e sua autenticidade.

Comparar isso com o silêncio ensurdecedor de uma ditadura é não honrar o passado e não respeitar o presente. É uma manipulação grosseira que merece como resposta, não a raiva, mas talvez uma pitada de piedade por quem parece habitar permanentemente esse mundo paralelo, onde os fatos são opcionais e a hipocrisia é a moeda corrente.

Estejamos atentos aos tempos.

amanda

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