O outro lado da chama: Histórias, desafios e a estrutura do Corpo de Bombeiros de Santa Maria

Por Mariana Rodrigues e Samara Debiasi

Antes da sirene e do resgate, existe o silêncio da espera e a rotina de quem está sempre pronto para o imprevisível. Nos bastidores das emergências, entre capacetes riscados e botas sujas de fuligem, estão vidas marcadas por escolhas difíceis e carregadas de histórias que raramente vêm à tona.

Ser bombeiro é lidar com a incerteza todos os dias. É tomar decisões em segundos que podem mudar destinos. A farda que vestem não representa apenas uma função, mas o símbolo de uma vocação movida pela coragem, disciplina e, sobretudo, humanidade.

Gestão e estratégia 

Embora o combate direto às chamas seja a face mais visível da corporação, é nos bastidores que se concentra boa parte da estratégia. E quando se fala em estrutura, Santa Maria se destaca. “O Corpo de Bombeiros Militar procura trabalhar sempre em prol da comunidade. Nós empregamos nosso efetivo, nossos recursos logísticos para que o serviço seja bem prestado”, afirma o Coronel Sallet, comandante do 4º Comando Regional de Bombeiros, sediado no município.

É no setor administrativo que se organizam escalas, são planejados treinamentos, feitas manutenções, preenchidos relatórios e analisadas ocorrências passadas para garantir eficiência nas futuras. São tarefas silenciosas, mas essenciais. Por trás de cada resposta rápida no campo, existe um sistema bem estruturado que torna a agilidade possível.

Nesse cenário, Santa Maria ocupa um papel central. A cidade é sede de um dos principais comandos do Corpo de Bombeiros Militar do Estado e responde, administrativamente, por mais de um terço dos municípios gaúchos. Ao todo, são 219 municípios sob sua responsabilidade. A área de abrangência vai desde a encosta da Lagoa dos Patos, passando por Camaquã, Lajeado e Frederico Westphalen, até o norte do estado. Isso permite que os batalhões locais foquem na parte operacional, enquanto o comando regional em Santa Maria cuida da estrutura administrativa e logística.

Essa estrutura robusta também se reflete nos investimentos em equipamentos. “Hoje a nossa comunidade está muito bem assistida com os equipamentos que nós temos. Contamos com equipamentos de ponta e novos”, destaca o Coronel Sallet.

Bombeiros em ação

A guarnição começa o turno de serviço às 8h da manhã, em uma escala que dura 24h. Logo ao chegar à base, a equipe realiza a conferência de todos os materiais, verificando as condições dos equipamentos que poderão ser utilizados ao longo do dia. É uma rotina que exige disciplina e atenção aos mínimos detalhes, mas que pode mudar em questão de segundos. 

O ritmo tranquilo da base desaparece assim que o rádio transmite um novo chamado. A conversa cessa, o café ainda quente fica esquecido sobre a mesa, e a tranquilidade do ambiente dá lugar a um estado de alerta absoluto. O que antes seguia em marcha lenta se transforma em um balé preciso de movimentos rápidos e automáticos.

Cada bombeiro já sabe seu lugar e o que deve fazer. Uniformes são colocados com agilidade, equipamentos ajustados, cilindros de ar comprimido nas costas e, sem demora, todos embarcam na viatura. Não há conversa fiada, não há dispersão, apenas olhares sérios e gestos sincronizados. O som do cinto sendo preso, do equipamento sendo ajustado, tudo isso se mistura à batida acelerada do coração e se perde no volume alto do alerta.

Na viatura, o foco está em outro lugar. A sirene corta o ar, e a cidade, sem saber exatamente o que está acontecendo, dá passagem. Antes mesmo que o caminhão pare por completo, as portas se abrem. Equipamentos são puxados, mangueiras esticadas, e ordens curtas são dadas entre o som das sirenes ainda ecoando. Tudo acontece numa dança arriscada, onde o menor erro pode custar vidas. 

A equipe da EnFoco pôde vivenciar essa adrenalina de perto durante uma simulação de princípio de incêndio. O alarme é acionado automaticamente por um detector de fumaça, um dos principais sistemas de segurança instalados em edificações conforme as normas de prevenção. A partir da detecção, o alerta chega à central, localizada geralmente na recepção, onde zeladores ou porteiros conseguem identificar rapidamente o andar afetado. Assim, já podem entrar em contato com o 193, onde um representante dos bombeiros no CIOSP (Centro Integrado de Operações de Segurança Pública) de Santa Maria recebe a chamada, coleta os dados sobre o incidente e aciona a guarnição ainda antes de sua chegada ao local.

Cada edificação passa por um rigoroso processo de regularização. Como explica o Capitão Quintana, tudo começa com um projeto técnico elaborado por engenheiros ou arquitetos, que é avaliado pelo Corpo de Bombeiros. “Após a análise e aprovação do projeto, realizamos uma vistoria presencial para garantir que as medidas previstas foram executadas corretamente. Só então é emitido o alvará de funcionamento”, detalha. Toda essa estrutura de prevenção não serve apenas para facilitar o atendimento em emergências reais.

Desafios que permanecem

Apesar da modernização constante, algumas demandas são levantadas por políticos, como a presença de uma escada Magirus, equipamento de grande porte usado em ocorrências de prédios altos. Mas, o Coronel esclarece: “Hoje ela não é necessária em Santa Maria, neste primeiro momento, porque a prevenção dos incêndios é muito avançada. Edificações com mais de 12 metros de altura, sejam prédios residenciais ou comerciais, têm medidas de prevenção instaladas que não necessitariam de uma alta escada mecânica para o atendimento de um sinistro.” 

Em contrapartida, a principal queixa dos profissionais lotados em Santa Maria não é a falta de equipamentos, como muitos pensam. A cidade conta com uma das melhores estruturas de prevenção do Estado. O maior desafio hoje é a defasagem de pessoal, como pontua o Coronel. “O nosso maior problema hoje é a atualização do quadro de efetivo com a população”. Em outras palavras, é preciso acompanhar o crescimento das cidades com maior número de profissionais para manter o padrão de atendimento e segurança.

O estatuto atual limita a ampliação do quadro de bombeiros, impedindo que novos profissionais sejam contratados mesmo diante da crescente demanda da cidade e região. Isso sobrecarrega quem está na ativa, compromete a agilidade em algumas ocorrências e amplia o desgaste físico e mental da equipe.

Além disso, o Corpo de Bombeiros ainda enfrenta preconceitos enraizados. Muitos desconhecem o rigor dos treinamentos, a complexidade das técnicas e o nível de preparo exigido. Há quem ainda veja o bombeiro apenas como “apagador de incêndio”, ignorando que eles atuam também em resgates aquáticos, acidentes de trânsito, buscas por desaparecidos, salvamento de animais e até mesmo em ações de prevenção e educação em escolas e comunidades.

É importante dizer que o nosso foco, hoje, do Corpo de Bombeiros Militar, é a prevenção. Seja prevenção de incêndios, prevenção de acidentes domésticos, cuidados no lar. Nenhum incêndio começa grande, nenhum acidente começa do nada”, reforça Sallet.

O Capitão Costa, do 4º Batalhão de Bombeiros Militar, destaca que a atuação da corporação vai muito além dos atendimentos emergenciais. Embora os chamados pelo 193 sejam a porta de entrada para muitas ocorrências, os bombeiros também desenvolvem iniciativas preventivas e de cidadania. “Atuamos com projetos como o Bombeiros Mirins. O mesmo efetivo que responde às emergências também está presente em ações educativas junto à comunidade”, explica o capitão, que trabalha diretamente no campo de operações.

Histórias de quem vive para proteger

Os rostos por trás dos uniformes carregam histórias que, por vezes, ficam ocultas no calor da emergência. Histórias como a da Capitã Aita, que entrou na corporação há apenas quatro anos e já se destacou pela competência e firmeza. Jovem, serena e respeitada pelos colegas, ela simboliza uma nova geração de bombeiros, com crescente presença de mulheres na corporação, inclusive em cargos de liderança.

“Eu conhecia o Coronel Sallet e estava estudando para outro concurso. E aí ele me falou: Não, estuda para os bombeiros, tu tem perfil, vai dar super certo. E eu disse: Mas, bem capaz, imagina eu apagando fogo. Não vai dar. Aí larguei tudo que eu estava estudando e comecei a me dedicar só para o concurso de oficial”, aponta a Capitã.

Ou como a do soldado Marafiga, que carrega no ombro um pequeno ursinho preso à farda dado por seu filho. “É a forma de mantê-lo perto de mim, e aliviar um pouco a tensão. Em situações mais complicadas, e acidentes mais pesados, é bom lembrar dele, parece que ajuda”, contou ele, visivelmente emocionado. O gesto simples diz muito. Em meio ao risco, o carinho é escudo. A saudade, combustível.

Esses símbolos falam. Dizem que por trás da força há sentimento, por trás da técnica há coração. E que, apesar das dificuldades, os bombeiros seguem firmes, não apenas porque juraram proteger a sociedade, mas porque acreditam, profundamente, naquilo que fazem.

Passar um dia com os bombeiros de Santa Maria é entender que, para além das cenas de cinema, existe um cotidiano de trabalho duro, dedicação invisível e estrutura que precisa de apoio. É sair do quartel com outro olhar. Com a certeza de que cada emergência atendida é resultado de horas de preparo, sacrifícios pessoais e uma entrega que não termina quando o fogo se apaga.

Ainda há muito a ser dito, sobre o impacto das enchentes na rotina da base, sobre o trabalho educativo nas escolas, sobre salvamentos que marcaram vidas. Mas esta visita serviu para acender uma faísca de respeito, de escuta, de valorização.

Mariana

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