No primeiro semestre do meu curso de Educação Física na UFRGS, em 1989, mergulhei nas aulas de Anatomia Geral. Como qualquer estudante da época, recursos eram escassos: refeições no restaurante universitário, o famoso “Le RU”, e passes estudantis para me locomover pela cidade.
Certo dia, ao passar por uma livraria especializada em obras russas – talvez o Centro Cultural Russo-Brasileiro –, deparei-me com um tratado de Anatomia Humana em espanhol. Decidi adquiri-lo, pensando que, assim, não precisaria depender exclusivamente dos empréstimos da biblioteca para estudar.
No início, desconfiado, passei algumas semanas – talvez duas – comparando o conteúdo desse livro com os textos ocidentais e americanos que circulavam na área.
Eis que a surpresa: as abordagens eram diametralmente opostas, especialmente nas introduções. Isso logo chamou minha atenção:
– O livro soviético descrevia o corpo humano como uma sociedade, naturalmente socialista, onde todos os órgãos e sistemas trabalhavam em conjunto pelo bem comum.
– O livro americano, por outro lado, apresentava o corpo como uma máquina altamente produtiva e eficiente.
– O ponto em comum? Ambos usavam o corpo humano como instrumento de propaganda ideológica.
Isso me fez refletir: o corpo, nosso bem mais sagrado – nossa morada, nosso porto seguro, nosso refúgio inviolável –, estava sendo apropriado para sustentar visões de mundo antagônicas.
Por que, então, não ressignificar essa narrativa e usá-la para um propósito genuinamente comum? E se passássemos a enxergar nosso corpo como um planeta? Como a própria Terra? Afinal, estamos falando de saúde planetária, ecossistemas e redes ecológicas.
E se, desde a escola e ao longo da formação acadêmica, ensinássemos crianças e estudantes a perceberem o corpo humano de uma nova maneira? Não como uma sociedade produtora, nem como uma máquina de eficiência implacável, tampouco como mero veículo ideológico. Mas sim como um sistema vivo, interconectado com o ambiente, influenciado por suas interações e impactos.
O corpo humano é uma rede ecológica complexa, em constante equilíbrio dinâmico. Um pequeno desequilíbrio pode ter consequências clínicas graves. Da mesma forma, nossa relação com o meio ambiente reflete essa fragilidade: doenças emergentes e o retorno de antigas enfermidades, o colapso de ecossistemas, o derretimento de geleiras, temperaturas extremas e eventos climáticos imprevisíveis são alertas urgentes dessa desconexão.
Está na hora de mudar.
Há cem anos, Chaplin disse que não éramos máquinas. No entanto, pouco fizemos para transformar essa realidade.
O que propomos nesta coluna é um convite à reflexão: discutir, de forma acessível e objetiva, questões essenciais para a saúde da população e do planeta. Afinal, compreender o corpo humano é também entender o mundo ao nosso redor.









3 Comentários:
Ótimo texto!!
Achei excelente a abordagem e vou indicar a leitura desse texto nas minhas aulas de educação física, para promover debates sobre o tema. Obrigada Palma!
Parabéns pela texto e pela proposta de abordagem para falarmos em saúde. Não se pode observar saúde sem considerar as relações desta com o meio sobre o funcionamento do corpo humano e seu desenvolvimento. A teoria Bio-ecológica de Bronfenbrenner é um bom exemplo para pensarmos nesse tema.
Desde já aguardo os próximos textos do colunista.