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“O poder só é real enquanto os que obedecem acreditam nele”: reflexões sobre gaslighting e violência psicológica – Das relações familiares as relações trabalhistas

Gaslighting. A palavra vem do inglês e significa, em tradução livre, algo como “iluminação a gás”  referência a uma peça teatral da década de 1930 em que um marido manipulava a esposa a ponto de fazê-la acreditar que estava perdendo a razão, enquanto ele diminuía, dia após dia, a intensidade das luzes da casa e negava que isso estivesse acontecendo. No português jurídico e psicológico, o termo é utilizado para designar uma prática de manipulação emocional em que o agressor faz a vítima duvidar de si mesma: da sua memória, de suas percepções, de suas convicções e até da própria sanidade.

É a violência que não grita, mas sussurra; que não deixa marcas no corpo, mas mina lentamente a confiança e a autoestima. No início, pode parecer apenas uma frase ríspida ou uma crítica isolada :  “você está exagerando”, “ninguém vai acreditar em você”, “sem mim você não é nada”. Porém, com a repetição, essas palavras constroem um ciclo silencioso de insegurança e dependência, em que a vítima passa a duvidar da própria realidade e se sentir cada vez mais impotente diante do agressor.

Gaslighting é uma das formas mais cruéis e silenciosas de violência psicológica, justamente porque corrói a vítima de dentro para fora, abalando sua percepção da realidade, sua autoestima e sua capacidade de agir. 

No campo jurídico, esse tipo de violência tem ganhado relevância especial, não apenas em ações de família, mas também em demandas cíveis, criminais e até trabalhistas, uma vez que consiste em manipulação emocional constante, utilizada para desestabilizar e controlar. Hoje, no direito brasileiro, pode ser enquadrada como forma de violência psicológica, reconhecida expressamente pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que em seu artigo 7º, inciso II, define como tal qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima, que prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento da mulher, ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.

Na prática profissional, esse tipo de abuso é mais comum do que se imagina. Uma cliente, por exemplo, mãe com dois filhos pequenos, que desejava se divorciar após anos de desgaste, relatava ouvir repetidamente do marido frases como: “Se você se separar de mim, vai perder a guarda das crianças, porque você não trabalha” ou “Você vai sair sem nada, porque tudo está no meu nome”. Tais expressões, isoladas, poderiam parecer apenas discussões acaloradas, mas em um contexto de repetição constante, representam clara tentativa de fragilizar a vítima, fazendo-a acreditar que não tem direitos, que não tem força e que sua vida está irremediavelmente condicionada à presença do agressor. Esse é o coração do gaslighting: o agressor cria uma narrativa paralela em que a vítima começa a duvidar da própria capacidade, da própria memória, até mesmo de sua sanidade.

Do ponto de vista psicológico, o gaslighting funciona como uma forma de despersonalização, em que a vítima é levada a acreditar que não é capaz de decidir por si mesma, ficando emocionalmente dependente do abusador. As consequências podem ser graves: depressão, ansiedade, crises de pânico e até o desenvolvimento de doenças psicossomáticas. A filosofia também nos ajuda a compreender esse processo: Simone de Beauvoir já alertava que a opressão não se dá apenas pela força, mas pela manipulação da consciência, pela interiorização de uma condição de submissão que passa a ser vista como natural. O gaslighting é justamente essa captura da subjetividade.

É importante reconhecer, no entanto, que o gaslighting não acontece apenas dentro das famílias. Ele também está presente no ambiente de trabalho, onde empregadores ou superiores hierárquicos utilizam as mesmas técnicas de manipulação para enfraquecer seus subordinados. Nesse contexto, surgem frases como: “Você está com sorte de ainda ter este emprego”“Se reclamar, tem uma fila querendo a sua vaga”“Você nunca entrega nada direito, precisa se esforçar mais” , mesmo quando o trabalhador cumpre rigorosamente suas funções. Esse padrão reiterado desestabiliza o empregado, fazendo-o acreditar que é incompetente ou insuficiente, quando, na verdade, trata-se de um mecanismo de poder e controle. No Direito do Trabalho, tais condutas podem caracterizar assédio moral, ensejando reparação por danos morais (art. 223-C e seguintes da CLT), além de eventual rescisão indireta do contrato de trabalho, nos termos do art. 483 da CLT, por tornar insuportável a continuidade da relação empregatícia.

No campo jurídico, reconhecer esse padrão de comportamento é fundamental. Quando a mulher, o trabalhador ou qualquer pessoa se depara com esse tipo de abuso, é necessário buscar apoio jurídico não apenas para garantir direitos em eventual divórcio, disputa de guarda ou rescisão de contrato de trabalho, mas também para assegurar medidas protetivas de urgência. A Lei Maria da Penha autoriza o juiz, diante de indícios de violência psicológica, a determinar o afastamento do agressor do lar, a proibição de contato e outras providências cautelares. Na esfera trabalhista, o Judiciário vem sendo cada vez mais sensível à necessidade de proteger a dignidade do empregado, reconhecendo o assédio moral como violação a direitos da personalidade.

As ferramentas jurídicas disponíveis são diversas: registro de boletim de ocorrência, pedidos de medida protetiva, ações de indenização por danos morais, rescisão indireta de contrato de trabalho, utilização de gravações de mensagens, e-mails ou testemunhos que demonstrem o padrão de manipulação. No âmbito do direito civil, pode-se também questionar cláusulas patrimoniais quando houver prova de que foram impostas em contexto abusivo. E, em muitos casos, a simples presença de um advogado ao lado da vítima já devolve parte da segurança e da confiança que o agressor tentou roubar.

É importante dizer que frases como “ninguém vai acreditar em vocꔓvocê está ficando louca”“eu sei o que é melhor para você e para as crianças”“sem mim você não é nada” ou, no ambiente profissional, “você não serve para mais nada além deste trabalho” não são apenas brigas ou críticas, mas instrumentos de controle e dominação. Quando se repetem e formam um padrão, configuram violência psicológica. Como advogada, vejo constantemente mulheres e trabalhadores que chegam ao escritório acreditando que não têm direitos, que vão perder os filhos, que não conseguirão se sustentar, ou que não podem se opor ao empregador por medo de represálias  e que reencontram sua voz no momento em que percebem que a lei os protege.

E é justamente nesse ponto que a filosofia de Hannah Arendt ecoa com clareza: “O poder só é real enquanto os que obedecem acreditam nele.” O gaslighting se sustenta na crença forçada de que o agressor detém todo o poder e de que a vítima é incapaz. Romper esse ciclo é, portanto, um ato de coragem e de libertação, que encontra no Direito não apenas respaldo técnico, mas também um espaço de reconstrução da dignidade.

Falar sobre gaslighting no direito é, portanto, falar de dignidade. É reconhecer que a violência não se resume a marcas no corpo, mas também àquilo que sufoca a alma. É, sobretudo, lembrar que buscar apoio jurídico não é apenas um ato de autoproteção, mas também de resistência contra a tentativa de silenciamento. A advocacia, nesse contexto, se torna não apenas um instrumento técnico, mas também humano: capaz de transformar medo em coragem, confusão em clareza e submissão em liberdade.

Mariana

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