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Os desafios de pessoas com autismo no mercado de trabalho

Por Mariana Rodrigues

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é frequentemente associado à infância. Campanhas educativas, políticas públicas e conteúdos digitais abordam as dificuldades enfrentadas por crianças autistas. No entanto, pouco se fala sobre a vida adulta. O que acontece com esses indivíduos ao crescerem? As dificuldades desaparecem? A resposta é simples: não. O TEA é uma condição permanente, e os desafios persistem, apenas assumem outras formas.  

O TEA não é uma doença. Como o próprio nome já diz, é um transtorno que afeta o neurodesenvolvimento. Isso significa que o cérebro da pessoa autista funciona de um jeito um pouco diferente. Esse funcionamento pode afetar a forma como ela se comunica, se relaciona, expressa sentimentos e percebe o mundo ao redor. É importante lembrar que o autismo é um espectro, ou seja, cada pessoa é única e possui diferentes combinações de habilidades, desafios e níveis de apoio necessários. Além disso, sensibilidades sensoriais são comuns, sons, luzes ou texturas podem provocar desconforto ou sobrecarga.

Com o tempo, estratégias para lidar com questões como a comunicação, a socialização e essa sensibilidade sensorial, podem ser desenvolvidas. Porém, novas barreiras surgem, e uma das mais significativas na fase adulta é a inserção no mercado de trabalho. 

Uma transição difícil 

A transição da infância para a vida adulta é um momento decisivo para qualquer pessoa. No caso de indivíduos com TEA, esse processo pode ser ainda mais desafiador. De acordo com a psicopedagoga Janice Bertoldo, muitos dos sistemas de apoio que existem durante a infância e adolescência desaparecem ou se tornam escassos na vida adulta. Isso gera um cenário de invisibilidade e abandono. Entre os desafios ela destaca o mercado de trabalho e a vida acadêmica. Segundo Janice, muitos desses ambientes não estão preparados para receber pessoas com necessidades específicas, como rotinas estruturadas, ambientes sensorialmente seguros e formas alternativas de comunicação. 

“A falta de compreensão e o capacitismo dificultam a entrada e permanência [de autistas nesses espaços]”, explica. Questões como entrevistas com forte carga subjetiva, exigência de interação social intensa e ambientes ruidosos tornam os processos seletivos e os espaços de trabalho verdadeiros obstáculos. Além disso, muitas pessoas só recebem o diagnóstico na vida adulta, o que significa anos enfrentando dificuldades sem compreender sua origem. Isso pode comprometer o desempenho escolar e levar à evasão de cursos ou sobrecarga emocional.

Janice defende mudanças urgentes nos processos de seleção e contratação, que devem incluir avaliações práticas, treinamento das equipes e investimentos em acessibilidade comunicacional. A interação social e comunicação são desafios que persistem. Autistas podem ter dificuldade em interpretar linguagem corporal, nuances de fala, sarcasmo e normas sociais implícitas. Essas barreiras levam ao isolamento e exclusão.

Outro desafio relevante tem relação à saúde mental e bem-estar. Com a perda de suporte e a intensificação das exigências sociais, muitos autistas adultos enfrentam quadros agravados de ansiedade, depressão e até ideação suicida. “O sistema de saúde, incluindo o SUS, muitas vezes não está capacitado para o diagnóstico e tratamento de autistas adultos, faltando protocolos específicos, equipes multidisciplinares e profissionais treinados”, denuncia Janice.

Por fim, ela destaca a autonomia como outro passo complexo para muitos autistas. Tarefas do dia a dia, como gerenciar finanças, usar transporte público, ou manter uma rotina estável, podem ser fontes constantes de estresse. 

O papel da família

A psicopedagoga destaca a importância do equilíbrio no apoio familiar. É preciso sempre priorizar a autonomia do adulto autista. “Apoiar um adulto da família é um ato de amor, mas é crucial encontrar o equilíbrio para não o infantilizar. A chave está em promover a autonomia, o respeito e a responsabilidade, mesmo diante dos desafios”, explica Janice. 

Mesmo que o adulto precise de apoio em algumas áreas, ele possui vivências, opiniões e capacidade para tomar suas próprias decisões. Para Janice, o erro mais comum é quando a família assume que sempre sabe o que é melhor ou acredita que a pessoa é incapaz de lidar com determinadas situações. 

Entre as recomendações estão: evitar infantilização, valorizar a opinião, focar nas habilidades, incentivar a autonomia, respeitar o espaço pessoal e, quando necessário, buscar apoio profissional.

A adaptação cobra seu preço

Convivendo em ambientes que não acolhem suas particularidades, pessoas autistas frequentemente desenvolvem estratégias para ocultar suas dificuldades e parecer “neurotípicas”. Esse processo é chamado por especialistas como masking, ou seja, mecanismos de camuflagem social. Isso significa que a pessoa aprende a imitar comportamentos esperados, disfarçar suas dificuldades e se adaptar às normas sociais para “passar despercebida” ou evitar o estigma. 

Apesar de parecer funcional, essa camuflagem pode ser emocionalmente desgastante e levar a problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e exaustão. “Eles vão tentando se colocar naquele meio social [do qual querem ser aceitos], mascarando as suas dificuldades para dar conta de muitas coisas que são difíceis à eles”, explica a professora, Jéssica Jaíne, Doutora em Educação Especial. Ela destaca ainda a importância de um diagnóstico na infância para auxiliar na independência e conforto social e sensorial. 

Outro ponto importante destacado por Jéssica é a questão dos níveis de suporte dentro do espectro. Classificados como níveis 1, 2 e 3, eles ajudam a dimensionar o grau de autonomia e a intensidade das intervenções necessárias para cada pessoa. Autistas de nível 1, por exemplo, podem ter uma comunicação verbal mais desenvolvida, o que não significa ausência de dificuldades. Pelo contrário. Muitas vezes, são justamente eles que percebem com mais clareza atitudes de preconceito e exclusão ao redor. Essa consciência pode gerar sofrimento psicológico profundo e impactar diretamente a autoestima, saúde mental e qualidade de vida. Por isso, o trabalho em equipe multidisciplinar, composta por terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos, psicopedagogos, educadores especiais, psicomotricistas, entre outros, é essencial nesse processo. 

“Todos nós entendemos que o nosso trabalho é esse. Ensinar e proporcionar com que essa pessoa consiga lidar com suas dificuldades. Essa é a grande proposta de uma intervenção da própria escola em si. Trabalhar questões com seus alunos para que eles consigam dar conta sozinho das suas dificuldades.”, afirma a especialista.

Autismo em adultos: um campo em expansão

De acordo com o Censo de 2022, cerca de 2,4 milhões de brasileiros declararam ter recebido o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista. O número equivale a 1,2% da população. Esses dados refletem o cenário nacional e abrangem todas as faixas etárias. No entanto, quando o foco recai sobre a população adulta, ainda é possível perceber grandes lacunas, tanto em termos de conhecimento quanto de visibilidade e políticas públicas específicas.

Ao conversar com o psicólogo e professor Carlo Schmidt, mestre e doutor em Psicologia do Desenvolvimento, ele destaca como o entendimento sobre o autismo vem se ampliando nos últimos anos. “Ainda é uma área nova. O autismo começou como se fosse um fenômeno do desenvolvimento infantil, parece que só acontecia durante a infância. Depois se começou a estudar um pouco a adolescência e agora, especialmente após o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que se diagnostica o autismo, o diagnóstico passou a abranger também adultos”, explica.  

A introdução do DSM-5 no manual incluiu o conceito de espectro do autismo, e com isso, passaram a ser identificadas pessoas com diferentes níveis de suporte, inclusive aquelas com sinais mais leves, que antes nem receberiam diagnóstico. Isso levou a um aumento nos diagnósticos tardios, ou seja, pessoas descobrindo que são autistas na vida adulta. 

Contudo, como aponta Carlo, o avanço no diagnóstico não tem sido acompanhado por políticas públicas eficazes voltadas a essa fase da vida, especialmente no mercado de trabalho e no ensino superior. “Acho que esses são os atuais maiores desafios no autismo”, aponta o psicólogo. Além do acesso ao trabalho, ele ressalta a necessidade urgente de se pensar em políticas para o envelhecimento da população autista, uma pauta ainda pouco explorada.

Direito ao trabalho garantido por lei, mas longe da realidade

O Estatuto da Pessoa com Deficiência  (Lei nº 13.146/2015) determina que o Estado, a sociedade e a família têm o dever de assegurar à pessoa com deficiência, grupo que inclui os autistas, o direito ao trabalho em condições acessíveis e igualitárias. Na prática, no entanto, ainda há um longo caminho a percorrer.

Para pessoas no espectro, a entrada no mercado de trabalho representa muito mais do que um emprego. É uma etapa decisiva para o desenvolvimento da autonomia, da autoestima e da inserção social. Entretanto, mesmo com leis e cotas, o apoio real dentro das empresas ainda é limitado. Há muitos esforços no papel, mas pouco suporte na prática, tanto para o ingresso quanto, principalmente, para a permanência dos autistas no ambiente de trabalho. 

Este o caso de Simone Rösler, 44 anos, diagnosticada como autista moderada, com níveis de suporte 2 e 3. Mesmo com formação em Licenciatura em Ciências Biológicas e curso técnico em Alimentos pelo Instituto Federal Farroupilha (IFRS), Simone enfrenta barreiras estruturais para acessar o mercado de trabalho. 

“Não trabalho, porque na minha cidade, Tupanciretã, não aceitam pessoas com deficiência e também com autismo. Já corri atrás, já levei meu currículo por todo lugar, e todos me negaram trabalho”, relata.

Ela destaca que enfrenta dificuldades com barulho, mudanças de rotina e ambientes, além de crises frequentes, perda de foco e sensibilidade a luzes. Ainda assim, ressalta que é uma pessoa ativa, comunicativa e disposta a contribuir profissionalmente. A experiência de Simone revela o preconceito e estigmas relacionados a pessoas com TEA. 

O psicólogo e professor Carlo reitera que promover a inclusão de pessoas com TEA exige mais do que respeitar leis e preencher cotas, é preciso investir em formação humanizada nas empresas. “A inclusão não é só educacional ou escolar, mas social que vem da área dos direitos humanos. É preciso reconhecer o valor intrínseco de cada indivíduo, não obstante as suas diferenças”, afirma Carlo. 

Ele reforça ainda a necessidade de treinar equipes, combater o capacitismo e o bullying, e adaptar os ambientes físicos, com atenção à iluminação, ruídos e ergonomia. Essas mudanças beneficiam não apenas os autistas, mas todos que convivem naquele espaço. 

Por que contratar uma pessoa com TEA?

Pessoas no espectro autista podem apresentar diversas habilidades que são um grande diferencial no mercado de trabalho. Como a atenção a detalhes, pensamento lógico e analítico, memória aguçada, precisão e organização, concentração, disposição para atividades repetitivas e metódicas, honestidade e confiabilidade. A partir dessas habilidades, a psicopedagoga Janice, destaca algumas áreas e tipos de trabalho tendem a ser mais favoráveis: 

  • Tecnologia da informação (TI);
  • Artes visuais e design;
  • Trabalhos investigativos e que exigem boa memória;
  • Profissões relacionadas a animais;
  • Estoque e logística;
  • Matemática e estatística;
  • Trabalho em laboratório;
  • Funções administrativas;
  • Edição e tradução de textos;
  • Manufatura e artesanato.

Além do tipo de trabalho, o ambiente também faz uma grande diferença. Empresas que se preocupam com a inclusão e oferecem adaptações podem criar um local de trabalho mais confortável. “Com compreensão, apoio e as estratégias certas, as pessoas com TEA podem se desenvolver muito e ter uma vida plena!”, afirma a psicopedagoga.

O conhecimento abre mentes

Compreender e apoiar pessoas com autismo exige empatia, respeito e a valorização da individualidade. O psicólogo Carlo Schmidt destaca a importância de enxergar cada pessoa a partir da sua própria história e vivência. 

“Existe uma atitude bem humana de lidar com a individualidade, que pode fazer toda a diferença para essas pessoas, que é justamente conhecê-las do ponto de vista pessoal. São pessoas formidáveis.”

Carlo reforça também o impacto positivo da inclusão, especialmente na educação. “Quando um professor consegue dar uma aula inclusiva para uma pessoa com autismo, ele está oferecendo uma aula de melhor qualidade para todos os alunos, não apenas para aquele estudante com autismo. Ele se torna um professor melhor”, pontua.

A profissional da Educação Especial, Jéssica Jaíne, aponta para a importância da informação: “O conhecimento abre mentes”. Ao contratar uma pessoa com Transtorno do Espectro Autista, é fundamental abrir diálogo para que se fale sobre isso. É preciso entender como funciona a cognição da pessoa, como se comunicar melhor com ela e como adaptar o que necessário para que se sinta confortável. Para ela, o caminho passa por diálogo e escuta ativa. “É olhar para essa pessoa, é saber como o que ela precisa, é adaptar o ambiente, é ser acessível através das minhas atitudes e buscar conhecimento sobre”, conclui Jéssica.

Conheça Raul Javorsky

O diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) veio cedo, aos três anos de idade. O primeiro sinal notado foi a dificuldade de interação com os colegas na pré-escola. Na infância, o suporte foi essencial para o desenvolvimento de habilidades básicas, como se vestir e ir ao banheiro sozinho. Mas os maiores avanços vieram aos 16 anos, quando encontrou os profissionais certos para acompanhá-lo. 

Em 2013, iniciou a faculdade “com a entrada na faculdade no meu primeiro curso, embora eu não tenha terminado, comecei a interagir melhor com o pessoal, passei a socializar mais”, relata Raul. E completa, “em 2014, ajustei a medicação com minha terapeuta e passei a ter um comportamento muito melhor. Consegui reunir 20 pessoas no meu aniversário daquele ano”.

Em 2015, embora o desempenho acadêmico não fosse dos melhores, a vida social prosperava, com amigos, viagens independentes a congressos e relacionamentos amorosos. Apesar das pausas e mudanças no percurso acadêmico, incluindo a desistência do curso de Física Médica em 2016, ele persistiu. Fez o ENEM no fim daquele ano e, em 2017, ingressou em Educação Física na UFSM. 

“Foi o melhor ano em todos os sentidos. Me encontrei profissionalmente e tive uma vida social ainda melhor. Vi meu time campeão da Libertadores pela primeira vez, estando presente no primeiro jogo da final contra o Lanús, na Arena”.

A escolha da profissão foi influenciada por sua vida de atleta de natação. “Tive meu melhor desempenho da vida entre fins de 2017 e início de 2019, tendo o auge em 2018. Sou especialista em borboleta e peito”, conta Raul, com orgulho.

De lá para cá, a trajetória tem sido marcada por conquistas: duas formações em Educação Física (Licenciatura e Bacharelado), especializações, vida afetiva estável e a entrada no mestrado acadêmico, com defesa marcada para agosto de 2025.

Hoje, Raul Javorsky tem 30 anos e é professor de Educação Física na Rede Municipal de Porto Alegre “conquistando a minha tão sonhada independência”, conclui.

Apesar do progresso, ele lembra que o caminho não foi fácil, especialmente no mercado de trabalho. “Houve dificuldade sim, principalmente na busca do primeiro emprego, em especial no setor privado. O pessoal não deu o tempo suficiente pra eu me adaptar, me mandou embora sem conhecer direito minhas potencialidades.” Ele reforça que autistas precisam de tempo e compreensão em ambientes novos. 

A história mostra que com apoio, autoconhecimento e paciência, tanto da pessoa com TEA quanto da sociedade, é possível alcançar independência, estabilidade emocional e realização pessoal.

Mariana

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  • Parabéns pela reportagem! A mídia tem papel importantíssimo na sociedade, levando conhecimento ao alcance de mais pessoas e não deixando um assunto tão importante aparecer apenas no dia internacional do autismo. Sou mãe atípica e espero que o mundo se torne um lugar melhor para todos, mais empático.

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