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Revisão dos Juros em Empréstimos Bancários: Entre o Direito e o Abuso

Quando o contrato vira desequilíbrio

Em tempos de crédito fácil e consumo acelerado, a contratação de empréstimos bancários tornou-se parte da vida financeira de milhões de brasileiros. Contudo, o que começa como uma solução imediata, o crédito pessoal, consignado, financiamento ou rotativo, pode rapidamente se transformar em um ciclo de endividamento insustentável, especialmente quando os juros aplicados são desproporcionais à realidade do mercado e à capacidade de pagamento do consumidor.

É nesse ponto que o Direito do Consumidor e o Direito Bancário se encontram: para garantir que a relação entre bancos e clientes seja pautada pela boa-fé, transparência e equilíbrio contratual. A revisão dos juros abusivos não é um privilégio, mas sim um direito legítimo quando o contrato viola princípios fundamentais de equidade ou afronta normas protetivas do consumidor.

O enquadramento jurídico da revisão contratual

A base legal da revisão dos juros bancários encontra-se no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), especialmente nos artigos 6º, inciso V, e 51, inciso IV, que asseguram ao consumidor o direito de modificar cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou que coloquem uma das partes em manifesta desvantagem.

Além disso, o Código Civil (artigos 317 e 478) também permite a revisão contratual diante de situações de onerosidade excessiva ou desequilíbrio, aplicáveis inclusive às relações bancárias quando caracterizada a hipossuficiência do contratante.

No âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou entendimento de que as instituições financeiras estão sujeitas ao CDC (Súmula 297/STJ), o que significa que suas práticas podem e devem ser fiscalizadas e revistas à luz das normas de proteção ao consumidor.

Portanto, quando os juros ultrapassam limites razoáveis, a cobrança pode ser considerada abusiva e passível de revisão judicial.

Juros livres não significa juros ilimitados

Um dos principais argumentos utilizados pelas instituições financeiras é o de que os juros bancários são “livres”, conforme a Súmula 382 do STJ, que estabelece que “a estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”.

Entretanto, o próprio Tribunal esclarece que a liberdade de contratar juros não é absoluta. Em diversos julgados, o STJ reafirmou que a taxa pactuada deve guardar razoabilidade em relação à média do Banco Central do Brasil , sob pena de caracterizar vantagem manifestamente excessiva.
Ou seja é possível a revisão dos juros remuneratórios nos contratos bancários quando comprovada a discrepância da taxa contratada em relação à taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central do Brasil.

Assim, a comparação entre os juros cobrados e a taxa média de mercado divulgada pelo Banco Central (BACEN) é um dos parâmetros mais utilizados para identificar práticas abusivas. Quando há diferença substancial geralmente acima de 50% em relação à média das taxas do BACEN a jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de readequação judicial.

A importância da boa-fé e da transparência

O contrato bancário, ainda que de adesão, deve observar o princípio da boa-fé objetiva, previsto no artigo 422 do Código Civil e reforçado pelo CDC. Isso significa que o banco deve agir com lealdade, clareza e transparência na informação das taxas, encargos e consequências do inadimplemento.

Na prática, no entanto, muitos consumidores desconhecem o custo efetivo total (CET) do empréstimo ou sequer compreendem a diferença entre juros remuneratórios, moratórios, multa e encargos contratuais. Essa assimetria de informação é um dos principais fundamentos que legitimam a revisão judicial, pois impede o consumidor de tomar uma decisão verdadeiramente consciente.

O STJ reconhece essa vulnerabilidade e tem reiteradamente afirmado que a informação insuficiente ou inadequada sobre encargos financeiros configura abuso e enseja a revisão contratual.

Nesse sentido, a ausência de informação clara e precisa acerca das taxas e encargos contratuais caracteriza violação ao dever de transparência e autoriza a revisão do contrato bancário.

Situações práticas em que cabe revisão

A revisão judicial de juros é cabível em diferentes contextos, sendo os mais recorrentes:

a) Empréstimos pessoais e consignados

Quando a taxa aplicada é muito superior à média de mercado, ou quando o consumidor não foi devidamente informado sobre o custo total da operação.

b) Financiamentos de veículos ou imóveis

Muitos contratos embutem tarifas, seguros ou encargos que elevam artificialmente a taxa efetiva de juros, configurando venda casada (vedada pelo art. 39, I, do CDC).

c) Crédito rotativo e cheque especial

Esses produtos frequentemente ultrapassam 400% ao ano em juros compostos. A cobrança excessiva, sem justificativa econômica plausível, tem sido objeto de revisão e até de restituição em dobro do valor pago a maior, com base no art. 42, parágrafo único, do CDC.

d) Superendividamento

Com a Lei nº 14.181/2021, que reformou o CDC, o Judiciário passou a reconhecer a possibilidade de repactuação global das dívidas e de revisão de cláusulas abusivas, inclusive de juros. Essa norma busca preservar o mínimo existencial do devedor, impedindo que o crédito se transforme em instrumento de exclusão social.

O papel do Judiciário e a responsabilidade social do crédito

A função do Judiciário, nesses casos, não é interferir arbitrariamente nas relações privadas, mas restabelecer o equilíbrio quando o contrato se torna instrumento de opressão econômica.

O crédito é essencial à economia, mas deve ser concedido com responsabilidade. O abuso das taxas de juros não apenas viola direitos individuais, mas compromete a saúde financeira da coletividade, fomentando o superendividamento estrutural.

Nesse sentido, o STJ vem consolidando entendimentos que favorecem a moderação das taxas, o afastamento da capitalização diária de juros e o controle das práticas abusivas, em sintonia com a função social do contrato (art. 421 do Código Civil).

A revisão das cláusulas contratuais bancárias é admitida quando verificada a abusividade, de modo a preservar a função social do contrato e o equilíbrio entre as partes.

Como o consumidor pode agir

Antes de recorrer ao Judiciário, é possível e recomendável tentar uma negociação extrajudicial com o banco, solicitando:
• A apresentação detalhada do contrato e do CET (Custo Efetivo Total);
• Um demonstrativo das parcelas pagas e dos encargos aplicados;
• A revisão administrativa dos juros e encargos.

Caso o banco se negue, o consumidor pode buscar o Procon, a Defensoria Pública ou um advogado especializado em Direito Bancário e Superendividamento para propor uma ação revisional de contrato bancário.

Nessa ação, é possível requerer, por exemplo:
• A limitação dos juros à taxa média de mercado do BACEN;
• A exclusão da capitalização indevida;
• A restituição (simples ou em dobro) dos valores pagos em excesso;
• A suspensão de cobranças e da negativação até a decisão final.

Considerações finais: o equilíbrio como princípio

A revisão dos juros bancários não é um ataque ao sistema financeiro, mas um instrumento de justiça contratual. O crédito deve servir à vida, e não à ruína econômica de quem busca um alívio temporário.

Em um país onde o endividamento atinge mais de 70% das famílias, a revisão judicial das cláusulas abusivas representa um mecanismo de contenção do abuso do poder econômico, devolvendo ao consumidor o direito de respirar e recomeçar.

O que se busca, afinal, não é eliminar o lucro dos bancos legítimo dentro da ordem econômica, mas assegurar que esse lucro não se construa sobre o sacrifício do mínimo existencial do cidadão.

Enquanto houver desequilíbrio, haverá espaço para o Direito atuar.
E é justamente aí que o advogado defensor da justiça contratual torna-se voz e escudo daqueles que, entre números e juros, ainda acreditam que a lei pode equilibrar a balança.

Elizandra Girardon
OAB/RS 100.183
Advogada especialista em Direito Bancário, Defesa do Executado e Execuções Rurais.
Mais de 24 anos de experiência no sistema financeiro. Atua hoje na defesa dos direitos do executados, do consumidor e do produtor rural, em busca da preservação do patrimônio e do mínimo existencial.

Mariana

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