Por Eizzi Benites Melgarejo
Advogada. Especialista em Direito de Família, Sucessões, Civil e Proteção de Dados. OAB/RS 86.686 – sócia do escritório Urach, Jensen, Abaide, Melgarejo e Brum
A violência patrimonial é silenciosa. Ela não grita, não estampa páginas policiais, não costuma resultar em boletins de ocorrência nem sempre é percebida por quem a sofre — mas está presente em milhares de relações afetivas marcadas por dependência emocional, manipulação e controle. Por muito tempo, o Direito das Famílias insistiu em romantizar o sacrifício financeiro em nome do amor. Foi conivente com estruturas que colocavam um dos cônjuges — geralmente a mulher — em posição de submissão, abrindo mão da própria autonomia econômica em prol da manutenção do lar, da educação dos filhos, ou simplesmente para não desagradar o parceiro. Mas o tempo mudou, e a sociedade passou a exigir mais responsabilidade emocional e patrimonial nas relações privadas. O Direito, contudo, ainda caminha a passos lentos.
Apesar de prevista expressamente no artigo 7º da Lei Maria da Penha, a violência patrimonial segue sendo um tema negligenciado no campo judicial e pouco explorado na prática forense. Na maioria dos casos, ela se manifesta de maneira sutil: retenção de cartões bancários, controle de senhas, destruição ou subtração de bens, simulação de dívidas, ocultação de patrimônio, assinatura forçada de contratos, proibição de trabalhar, limitação de acesso ao próprio dinheiro, exclusão da construção patrimonial conjunta ou apropriação de bens herdados. Esses comportamentos — muitas vezes naturalizados — têm o poder de aprisionar a vítima numa realidade de dependência e medo, tornando a separação mais difícil e a reconstrução da autonomia financeira, quase impossível.
As relações afetivas não são relações jurídicas neutras. Elas envolvem afeto, expectativa, confiança — mas também poder. E onde há desequilíbrio de poder, há espaço para abusos. A violência patrimonial é, nesse contexto, um instrumento sofisticado de dominação. Ela pode ser tão destrutiva quanto a violência física, especialmente quando compromete a capacidade da vítima de tomar decisões, sair de casa, criar os filhos com dignidade ou mesmo existir com liberdade. Não é por acaso que muitas mulheres vítimas de feminicídio vinham, anos antes, enfrentando formas veladas de abuso financeiro dentro de casa.
Em muitos desses contextos, surge uma figura especialmente vulnerável: a mulher que, ao longo de uma união, dedicou sua vida à família, à casa e ao sucesso do companheiro. Ela que renunciou à própria formação, à construção de uma carreira, à inserção no mercado de trabalho e à realização de projetos individuais. Muitas vezes, ela foi a estrutura invisível que permitiu ao outro crescer — acompanhando reuniões, recebendo clientes em casa, cuidando dos filhos enquanto ele viajava, organizando a vida para que ele prosperasse nos negócios. Essa contribuição velada, não quantificável em cifras, mas absolutamente decisiva, precisa ser reconhecida juridicamente.
É nesse cenário que ganha relevo a figura da pensão compensatória. Não como um favor, não como um prêmio por “bons serviços prestados”, mas como um instrumento de justiça. A pensão compensatória não se confunde com alimentos tradicionais. Ela se justifica pela assimetria patrimonial gerada pela própria lógica da relação: enquanto um acumulava capital, o outro arcava com o trabalho invisível e não remunerado da esfera doméstica. Ao fim da união, esse desequilíbrio se materializa: um sai com negócios sólidos, rede de contatos, estabilidade financeira e autonomia; o outro, sem histórico profissional, muitas vezes já em idade avançada, sem previdência, sem independência e com pouco tempo para recomeçar.
Negar esse direito é legitimar um modelo de relacionamento em que um se beneficia enquanto o outro desaparece socialmente. Reconhecer a pensão compensatória é romper com a visão patrimonialista que mede a contribuição conjugal apenas por aportes econômicos diretos. É dizer, com todas as letras, que cuidar da casa, criar filhos, sustentar emocionalmente o parceiro e abrir mão de si mesma em nome do “nós” tem valor — e deve ser compensado, sob pena de perpetuar uma forma institucionalizada de exploração.
O reconhecimento desse fenômeno pelo Judiciário ainda é incipiente. A jurisprudência, em sua maioria, trata do tema apenas tangencialmente, como argumento acessório em ações de divórcio, alimentos ou partilha de bens. Há decisões isoladas que reconhecem indenizações por danos morais em razão da prática de violência patrimonial, mas ainda falta uma compreensão sistemática e multidisciplinar que permita ao julgador compreender a gravidade dessa forma de abuso. O Direito Civil, ao tratar dos efeitos patrimoniais da vida conjugal, precisa abandonar a visão romantizada da renúncia voluntária e reconhecer, com honestidade, que muitas vezes essa renúncia é fruto de coerção silenciosa, de relações assimétricas e de imposições sutis, mas contínuas.
Uma atuação mais comprometida do Judiciário com a proteção da autonomia patrimonial da vítima exige mudança de paradigma. A primeira delas é admitir que o amor não é excludente da responsabilização. É possível reconhecer que um companheiro foi afetuoso e presente, e ao mesmo tempo, que exerceu controle financeiro abusivo. A segunda é ampliar a interpretação da violência patrimonial para além dos limites da Lei Maria da Penha e incorporá-la como categoria relevante no Direito de Família e Sucessões. Isso significa analisar com atenção a história econômica da relação, os impactos da desigualdade patrimonial na tomada de decisões e, sobretudo, garantir mecanismos de reparação e recomposição do equilíbrio financeiro.
Há quem argumente que esse tipo de análise fere a liberdade contratual ou a intimidade das partes. Mas não há liberdade real onde há dependência. E o princípio da dignidade da pessoa humana exige que o Estado promova, com efetividade, a autonomia dos indivíduos nas relações privadas. O Direito deve proteger, antes de tudo, a liberdade de ser — inclusive dentro da própria casa.
A ausência de mecanismos legais específicos para lidar com esse tipo de violência não pode justificar a omissão. O ordenamento já oferece instrumentos que, se bem interpretados, podem dar conta do problema: a responsabilidade civil, a pensão compensatória, a teoria do abuso de direito, o enriquecimento sem causa e o princípio da boa-fé objetiva são alguns dos caminhos possíveis para garantir justiça e equilíbrio. A atuação da advocacia especializada pode fazer a diferença ao identificar o padrão de abuso e formular pedidos consistentes, com provas documentais e testemunhais que revelem o histórico da relação.
Além disso, o papel da educação jurídica é central. Para isso, é necessário ouvir as vítimas, compreender suas trajetórias, superar o formalismo excessivo e, acima de tudo, atender com empatia e responsabilidade social.
A violência patrimonial nas relações afetivas é o reflexo de uma cultura que ainda naturaliza o controle do outro como forma de amar. Enquanto isso não for enfrentado com seriedade pelo Direito, continuaremos perpetuando ciclos de opressão que mantêm milhares de pessoas reféns da dependência econômica e do medo. Reconhecer o problema é o primeiro passo. O segundo é agir — com coragem, técnica e sensibilidade.
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