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A Responsabilidade Médica e o Valor da Prova Escrita

Eizzi Benites Melgarejo OAB/RS 86.686 – especializada em direito médico e privacidade – LGPD

A medicina, mais do que qualquer outra profissão, repousa sobre a confiança. Quando um paciente procura seu médico, deposita nele não apenas a expectativa de cura, mas a entrega íntima de sua própria vulnerabilidade. 

Essa relação profundamente humana, construída sobre a credibilidade e a ciência, é também uma relação jurídica. Ainda que muitas vezes estabelecida apenas de forma verbal, ela produz efeitos concretos, exigindo do médico não apenas conhecimento técnico, mas também diligência, clareza e registro.

A doutrina contemporânea reconhece que o contrato médico é atípico, personalíssimo e bilateral. Diferencia-se de outros contratos porque não tem por objeto a promessa de um resultado, mas sim a prestação de cuidados diligentes, orientados pela lex artis. Não se trata, portanto, de “obrigação de curar”, mas de “obrigação de cuidar”. Essa distinção, como lembra Eduardo Dantas, é essencial para compreender a dinâmica da responsabilidade civil na área médica.

No campo jurídico, há divergências: parte da jurisprudência entende que a relação médico-paciente se subsume ao Código de Defesa do Consumidor; outra corrente sustenta que a natureza personalíssima do ato médico não se ajusta ao paradigma de mercado. Mas, independentemente dessa controvérsia, uma certeza se mantém: a responsabilidade do médico é subjetiva. Para que haja condenação, é indispensável a comprovação de culpa, seja por negligência, imprudência ou imperícia.

Esse é justamente o ponto nevrálgico: a prova. Muitas ações judiciais não decorrem de erros técnicos evidentes, mas da ausência de documentação capaz de demonstrar que a conduta médica foi correta. 

O prontuário lacônico, a falta de registro sobre informações transmitidas ao paciente, a inexistência de um termo de consentimento informado robusto, tudo isso se converte em fragilidade no processo. Quando não há prova escrita, a palavra do paciente, amparada pela hipossuficiência reconhecida judicialmente, ganha peso desproporcional.

O Código de Ética Médica é explícito ao determinar que o médico deve respeitar o dever de informar, esclarecer, preservar sigilo e agir com lealdade. Tais princípios, contudo, precisam ser mais do que uma conduta moral; devem ser materializados documentalmente. 

O registro escrito não apenas cumpre uma função administrativa, mas traduz em prova a própria essência do cuidado. O consentimento informado, nesse contexto, revela-se não como mera formalidade, mas como instrumento de autonomia do paciente e de proteção jurídica do profissional.

Na prática forense, o consentimento informado tem sido elemento decisivo em inúmeras demandas. Sua ausência, mesmo quando o procedimento foi realizado de forma tecnicamente impecável, pode gerar condenações. Isso porque o direito do paciente de escolher livremente sobre seu corpo é considerado cláusula essencial da relação médico-paciente. Documentar que os riscos foram apresentados, que alternativas foram discutidas e que a decisão foi tomada de forma consciente é a única forma de transformar a confiança em segurança jurídica.

Mas a documentação não se limita ao consentimento. O prontuário completo, detalhado e tempestivo é igualmente indispensável. Ele é a narrativa técnica que sustenta a defesa do médico em eventual litígio. Mais do que um instrumento clínico, o prontuário é também peça probatória, e sua ausência ou deficiência frequentemente pesa de forma decisiva em ações indenizatórias.

O contexto atual de crescente judicialização da saúde impõe aos médicos uma nova consciência: a de que a prática clínica não se encerra no ato médico em si, mas inclui a gestão preventiva de riscos jurídicos.

 E é exatamente nesse ponto que a advocacia se torna parceira estratégica. O advogado especializado não atua apenas em juízo, quando já existe um litígio instaurado, mas sobretudo na construção preventiva de instrumentos que blindam o exercício da medicina: contratos bem estruturados, termos claros, protocolos adequados, políticas de sigilo e conformidade com normas como a LGPD.

A medicina continuará a ser, sempre, uma profissão de ciência e humanidade. Mas o exercício contemporâneo exige que o cuidado seja também documentado e juridicamente amparado. O maior risco para o médico, hoje, não é errar tecnicamente, mas não ter como comprovar que agiu com diligência e dentro dos padrões éticos e científicos. É por isso que o diálogo entre medicina e direito precisa ser cada vez mais estreito: para que o médico possa continuar a cuidar com liberdade, protegido por um arcabouço jurídico que legitime e resguarde sua atuação.

Reinaldo Guidolin

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